28 agosto, 2010
0 Somente Pela Graça - João Calvino
- A
CONSONÂNCIA DAS PROMESSAS DA LEI E DO EVANGELHO -
AS
PROMESSAS DA LEI NÃO INDUZEM À SALVAÇÃO ATRAVÉS DO MÉRITO DAS OBRAS, O QUAL
SOMENTE À CONDENAÇÃO PODERIA CONDUZIR
Prossigamos agora também com
outros argumentos mercê dos quais Satanás se empenha, através de seus
satélites, ou em demolir ou enfraquecer a justificação pela fé. Julgo que já
subtraímos a nossos caluniadores a possibilidade de acusar-nos de sermos inimigos
das boas obras; porque negamos que as obras justifiquem, não para que não se
faça nenhuma boa obra, nem tampouco para negar que as boas obras sejam boas,
mas para que não nos fiemos nelas, nem nelas nos gloriemos, nem lhes atribuamos
a salvação. Pois esta é nossa confiança, esta nossa glória, a única âncora de
nossa salvação: que Cristo, o Filho de Deus, é nosso, e nós, por nossa vez,
nele somos filhos de Deus e herdeiros do reino celeste, chamados à esperança da
bem-aventurança eterna pela benignidade de Deus, não por nossa dignidade.
Mas, visto que, como foi dito,
contra nós investem ainda com outras máquinas de guerra, então avancemos também
a rebatê-los. Em primeiro lugar, volvem-se para as promessas legais que o
Senhor promulgou visando aos cultores de sua lei, e perguntam se porventura
queremos que elas sejam inteiramente sem préstimo ou eficazes. Uma vez que
teria soado mal e seria ridículo dizer que são sem préstimo, assumem como
reconhecido que elas são de alguma eficácia. Daqui arrazoam que não somos
justificados pela fé somente. Pois assim fala o Senhor: “Será, pois, que, se
ouvindo estes juízos, os guardardes e cumprirdes, o Senhor teu Deus te guardará
a aliança e a misericórdia que jurou a teus pais; e amar-te-á, e abençoar-te-á,
e te fará multiplicar” etc. [Dt 7.12, 13]. Igualmente: “Mas, se deveras
melhorardes vos¬sos caminhos e vossas obras; se deveras praticardes o juízo
entre um homem e seu próximo; se não oprimirdes o estrangeiro, e o órfão, e a
viúva, nem derramardes sangue inocente neste lugar, nem andardes após outros
deuses, para vosso mal, eu vos farei habitar neste lugar” etc. [Jr 7.5-7]. Não
desejo recitar inutilmente mil passagens do mesmo teor, porque, uma vez que
nada diferem de sentido, serão explicadas pela solução destas. Em síntese,
Moisés testifica que na lei se propõem a bênção e a maldição [Dt 11.26], a
morte e a vida [Dt 30.15]. Portanto, assim concluem que, ou esta bênção se
torna ociosa e infrutífera, ou a justificação não é somente pela fé.
Já mostramos acima como, se nos
apegamos à lei, somos destituídos de toda bênção, somente maldição paira
ameaçadora, a qual foi ordenada para todos os transgressores [Dt 27.26]. Ora, o
Senhor não promete coisa alguma, senão aos perfeitos cultores de sua lei, os
quais nenhum se acha. Permanece, pois, que toda a raça humana é indiciada
mediante a lei como sujeita à maldição e à ira de Deus, das quais, para que se
livrem, necessário se faz escapar ao poder da lei, e como que de sua servidão
guindar-se à liberdade, na verdade não àquela liberdade carnal que nos afasta
da observância da lei, nos incita à conspurcação de todas as coisas, permite
que nossa concupiscência se exceda como se as barreiras fossem rompidas ou as
rédeas, soltas; ao contrário, aquela liberdade espiritual que conforta e
soergue a consciência perturbada e consternada, mostrando-a livre da maldição e
da condenação com que a lei a premia, amarrada e constrita. Esta liberação e,
por assim dizer, alforria da sujeição à lei conseguimos quando, mediante a fé,
apreendemos a misericórdia de Deus em Cristo, pela qual somos feitos seguros e
convictos da remissão dos pecados, de cujo senso a lei nos pungia e remordia.

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27 agosto, 2010
0 Calvino - Pastor e Pregador
Portanto, o primeiro arranjo a
ser feito foi.o de que ele deveria começar a trabalhar em Genebra simplesmente
como um professor. "Naquela igreja...", ele explicou mais tarde,
"assumi primeiramente o ofício de doutor." Eles rapidamente
descobriram, entretanto, que ninguém poderia se equiparar a ele como pregador
e, num determinado momento, foi chamado para se tornar o pastor ou o bispo da congregação
local. Esse, segundo ele pensava, era o mais elevado e mais abrangente ofício
que Deus poderia dar a alguém dentro da Igreja. Ele envolvia responsabilidade
pelo cuidado e disciplina do rebanho, a manutenção dos membros em unidade, e
também a pregação e o ensino. Calvino sempre acreditou que ninguém poderia
jamais obter ou reter o título pastoral sem ter uma comunidade própria para
pregar regularmente. Isso porque, em sua visão, um papa que cuidava meramente
da administração geral da Igreja não tinha o direito de se autodenominar bispo.
Possivelmente ele também tenha
descoberto, graças à sua eficácia como mestre ou teólogo, que precisava da
comunhão da paróquia. Apenas na liderança ativa do povo de Deus, e em
relacionamento íntimo com ele, Calvino poderia averiguar a fidelidade de seu
ensino à palavra de Deus, e sua eficácia, enquanto tentava trabalhar as
implicações da Reforma para a vida cristã e para o bem cristão da comunidade.
Seu ensino teria perdido sua alma se ele tivesse partido para a erudição
isolada da vida inteiramente acadêmica. Ter um trabalho especial perto da linha
de frente salvou-o de se transformar meramente num burocrata eclesiástico de
palavrório teórico, com inevitáveis iluminações parciais, capaz de alimentar
mais a imprensa que o próprio rebanho.
A tarefa de pregar regularmente
a Palavra levou-o enfim ao coração do movimento da Reforma em sua batalha pela
alma da Europa, pois, foi mais por meio de sua pregação, que por meio de
qualquer outro aspecto de sua obra, que ele exerceu a extraordinária influência
que todos reconhecem que ele teve.
De maneira alguma tem sido
incomum na história da Igreja que a pregação tenha se tornado um fator poderoso
na conversão de pessoas e comunidades, na mudança de costumes sociais e na
condução de homens para a ação política. Podemos pensar, por exemplo, no
marcante relato de Agostinho sobre como sua pregação em Cesaréia, na
Mauritânia, subjugou os homens de uma comu¬nidade selvagem e moveu-os a
abandonar para sempre seus costumeiros períodos anuais de assassinatos intrafamiliar.
Além disso, a Idade Média não se ressentia da falta de pregadores de poder e
influência excepcionais. Porém, na época da Reforma, o que havia sido
anteriormente ocasional, e até mesmo raro, pareceu transformar-se por um tempo
numa experiência comum dentro da vida normal da Igreja.
Muitas vezes, a influência do
pregador sobre sua comunidade é uma força profundamente difusa, difícil de ser
investigada em seus resultados precisos. Porém, também muitas vezes, a pregação
é uma causa imediata óbvia de importantes mudanças de atitudes e atmosferas em
períodos críticos na luta como um todo — como, por exemplo, nos sermões de
Lutero em Wittemberg, em 1532, ou os sermões de John Knox, em Perth, no momento
crítico da Reforma na Escócia. Os próprios reformadores eram conscientes da
poderosa e ampla influência que eles exerciam por meio da pregação. Lutero
estava muito confi¬ante de que poderia resistir aos "ásperos lordes e aos
raivosos nobres e superá-los", como ele tinha resistido "ao ídolo
deles, o papa e superado-o", apenas com palavras.6 John Knox escreve numa
carta datada de 23 de junho de 1559 de como "por mais de quarenta dias meu
Deus tem usado minha língua no meu país de origem para a manifestação de sua
glória",7 estando confiante o suficiente para contar a Cecil no mesmo ano
que "Cristo Jesus crucificado, agora começou a ser pregado", poderia
juntar os corações daqueles há tempo prejudicados por Satanás e trazer
"perpétua concórdia" entre os dois reinos da Escócia e da Inglaterra.
Além disso, os relatos dessa
época indicam que havia um anseio incomum da parte do povo em geral para ouvir
a pregação da Palavra de Deus. Já observamos que a experiência inicial de Calvino
de encontrar-se constantemente cercado por aqueles que tinham "sede por ensino
relevante", e a despeito de todas as suas diferenças e tensões, o povo e
as autoridades de Genebra precisavam de Calvino tanto
quanto Calvino precisava deles também. A demanda por pastores que poderiam
pregar a Palavra era intensa em todo o mundo reformado. Quando lemos que em
Genebra em 1549 o concílio ordenou aos pregadores que pregassem um sermão a
cada manhã da semana em vez de em manhãs alternadas,9 e que o primeiro livro de
disciplina na Escócia, em 1560, ordenava que "em cada cidade notável, um
dia, além dos domingos, deveria ser escolhido para sermão e oração", não
devemos imaginar que por trás dessas ordenanças existisse um clérigo agressivo
e presunçoso assegurando por ele mesmo e por seus pontos de vista uma posição
dominante de influência na comunidade. A iniciativa tinha partido de leigos que
queriam até mesmo mais do que muitos de seus pastores poderiam dar. A
"multidão de pessoas" que foi registrada pelo Concílio em Genebra
para assistir aos sermões de Viret e Calvino não estava lá como vítima de uma
disciplina de ferro. As pessoas queriam ouvir a Palavra. A carta de John Knox
de St. Andrews, datada de 23 de junho de 1559, pode ser citada: "A sede do
povo pobre tanto quanto da herança nobre, é maravilhosamente grande, o que me
deu o conforto de que Cristo Jesus triunfará no Norte e nas partes extremas da
terra".

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25 agosto, 2010
0 1534-1536 - Um Doutor da Igreja – João Calvino
- Chamado
e Início do Ministério -
Paris, Poitiers, Orleans,
Estrasburgo, Basiléia, Itália - esses são os pontos principais no itinerário de
Calvino durante esses dois anos ou mais. Ele mesmo se confessa "um tanto
quanto inculto e retraído". Sua timidez fez com que ele buscasse
"algum canto recluso" onde pudesse ter paz para estudar. Mas seus
retiros transformaram-se "em escolas públicas" pois, "antes que
houvesse pas¬sado um ano, todos os que tinham qualquer desejo por pura doutrina
estavam continuamente vindo até mim para aprender, ainda que eu mesmo me
sentisse como um mero noviço e um principiante".1 Sua permanência em
Orleans deve ser conectada com a redação da sua primeira obra teológica,
Psychopannychia - um livro contra um aspecto do ensino anabatista de então. O
subtítulo explica isso. "Uma refutação do erro cometido por algumas
pessoas despreparadas que ignorantemente imaginam que, no intervalo entre a
morte e o julgamento, a alma entra em sono profundo, junto com uma explicação da
condição e da vida da alma depois desta presente vida." O livro foi
publicado posteriormente em 1542.
Em seu caminho para a Basiléia,
aonde chegou em 1535, ele passou por Estrasburgo. Lá ele trabalhou em parcial
reclusão, tendo publicado, em março de 1535, a primeira edição das Instituías
da Religião Cristã. Tratava-se, então, de uma obra comparativamente curta de
tamanho reduzido. A fé reformada estava, na França, sendo confundida tanto com
os ensinos grosseiros dos anabatistas quanto com as doutrinas sediciosas e
revolucionárias. Seus seguidores estavam sendo perseguidos indiscriminadamente,
como se suas crenças devessem ser identificadas com esses "delírios
perversos e falsas opiniões". Calvino queria, portanto, oferecer um relato
justo disso. Ele introduziu seu livro com uma carta ao rei da França, apelando
por justiça e clemência nos julgamentos. "Se o monarca tivesse lido essa
carta", diz Beza, "eu estaria muito enganado se uma profunda ferida
não tivesse sido infligida até mesmo à prostituta da Babilônia." A carta
revela que o objetivo de Calvino em escrever era também pastoral. Ele havia
encontrado muitos de seus compatriotas em vários lugares "famintos e
sedentos por Cristo", ainda que completamente sem instrução alguma. Ele,
portanto, ofe¬receu a eles um manual para ajudá-los a entender.
Na primavera de 1536, ele
partiu novamente para suas viagens, dessa vez indo para a Itália sob o nome de
Charles d'Espeville (um nome que ele freqüentemente usou em correspondências
posteriores). Ele fez essa viagem para encontrar-se com Renée, a Duquesa de
Ferrara, uma das filhas de Luís XII, que havia dado abrigo em sua corte para
vários refugiados importantes da fé reformada. Calvino "confirmou-a em seu
zelo pela verdadeira religião", diz Beza. Mais tarde ela procurou a ajuda
e o conselho dele por meio de cartas. Na casa dela, o futuro reformador
encontrou-se com Clement Marot, o poeta e escritor de hinos francês.
Há pouca dúvida de que, nessa
época, a publicação das Instituías tivesse dado a ele uma certa reputação entre
os reformadores, e que ele tivesse se lançado decisivamente na luta da Igreja
ao lado deles. De fato, sua vida de trabalho dentro da Igreja já havia
começado. Ele acreditava que, dos dois ofícios principais apontados por Cristo
para um lugar permanente na Igreja, o mais próximo ao pastorado ou ao
episcopado devia ser o de doutor - isto é, um professor de Teologia - que tinha
a responsabilidade de manter a "sã doutrina" na Igreja em geral.
Nessa época ele achava que estava cumprindo esse ofício, mesmo que a incerteza
dos tempos não permitisse a ele gozar de uma ordenação regular para esse
ministério.
Ronald Wallace

23 agosto, 2010
0 Piedade com Contentamento – João Calvino
Mas
a piedade é grande lucro (1Tm 6.6,7). De uma forma elegante, e com uma mudança
irônica, o apóstolo repentinamente arremessa contra seus oponentes as mesmas
palavras com significado oposto, como se quisesse dizer: "Eles agem
errônea e impiamente em fazer comércio da doutrina de Cristo, como se a piedade
fosse [fonte de] lucro; e no entanto entenderam corretamente que a piedade é de
fato um grande e riquíssimo lucro." Ele a qualifica assim porque ela nos
traz plena e perfeita bem-aventurança. Aqueles que se aferram à aquisição de
dinheiro, e que usam a piedade para granjearem lucros, tornam-se culpados de
sacrilégio. Mas a piedade é por si só suficientemente um imensurável lucro para
nós, visto que é através dela que nos tornamos não só os herdeiros do mundo,
mas também [é através dela] que somos capacitados para o desfruto de Cristo e
de todas as suas riquezas.
Com
contentamento. Esta pode ser uma referência ou a uma
disposição íntima ou a uma suficiência de riqueza. Se porventura for
subentendida como uma disposição, o significado será: os piedosos que nada
desejam, mas que vivem contentes com sua pobreza, esses têm granjeado um grande
lucro. Mas se for tomada no sentido de suficiência âe possessões -
interpretação esta que no momento me agrada -, será uma promessa como aquela do
Salmo 34.10: "Os filhos dos leões passam necessidade e sofrem fome, mas
àqueles que buscam ao Senhor bem nenhum faltará." O Senhor está sempre
presente com seu povo; e, segundo a demanda de nossas necessidades, ele concede
a cada um de nós uma porção de sua própria plenitude. Portanto, a genuína
bem-aventurança consiste na piedade, e essa suficiência é tão boa quanto um
razoável aumento de lucro.
Porque nada trouxemos para o mundo. Ele
acrescenta esta cláusula a fim de definir o limite do que nos é suficiente.
Nossa cobiça é um abismo insaciável, a menos que seja ela restringida; e a
melhor forma de mantê-la sob controle é não desejarmos nada além do necessário
imposto pela presente vida; pois a razão pela qual não aceitamos esse limite
está no fato de nossa ansiedade abarcar mil e uma existências, as quais debalde
sonhamos só para nós. Nada é mais comum e nada mais geralmente aceito do que
essa afirmação de Paulo; mas tão pronto tenhamos concordado com ela - vemos
isso acontecendo todos os dias -, cada um de nós prevê que suas necessidades
absorverão vastas fortunas, como se possuíssemos um estômago bastante grande
para comportar metade da terra. Eis o que diz o Salmo 49.13: "Ainda que
pareça loucura que os pais esperem habitar aqui para sempre, todavia sua
posteridade aprova o seu caminho." Para assegurarmos que a suficiência
[divina] nos satisfaça, aprendamos a controlar nossos desejos de modo a não
querermos mais do que é necessário para a manutenção de nossa vida. Ao
qualificar de alimento e cobertura, ele exclui o luxo e a superabundância. Pois
a natureza vive contente com um pouco, e tudo quanto extrapola o uso natural é
supérfluo. Não que algum uso mais liberal de possessões seja condenado como um
mal em si mesmo, mas a ansiedade em torno delas é sempre pecaminosa.

20 agosto, 2010
0 Aos Ricos deste Mundo – João Calvino
Ordena
aos que são ricos (1 Tm 6.17). Visto que muitos dos cristãos
eram pobres e oprimidos, é provável que, como geralmente sucede, fossem
desprezados pelos ricos; e esse poderia especialmente ser o caso em Éfeso, que
era uma cidade opulenta; pois, em tais regiões, o orgulho costuma ser ainda
pior. Aprendamos, pois, desse fato quão perigosa é a abundância das coisas
materiais. Paulo tem boas razões para dirigir especialmente aos ricos uma
advertência tão severa; seu intuito é remediar os erros que quase sempre acompanham
as riquezas, precisamente como nossa sombra acompanha nosso corpo; e tal coisa
se dá pela depravação de nossa mente que faz dos dons divinos ocasião para o
pecado. Ele menciona especificamente duas coisas das quais os ricos devem
precaver-se, ou seja: o orgulho e a falsa segurança - a primeira oriunda da
segunda. Nem depositem sua esperança na
instabilidade das riquezas foi adicionado para que Paulo atraísse a atenção
deles para a fonte de seu orgulho. A única razão pela qual os ricos se tornam
insolentes e se deleitam tão acentuadamente em cultivar o desprezo pelos demais
é que se imaginam especial e supremamente ditosos. A vã confiança vem primeiro,
e a arrogância vem logo a seguir.
Quando Paulo desejava corrigir
esses erros, primeiramente ele fala desdenhosamente das riquezas, pois a frase, do presente mundo, tem o intuito de
rebaixá-las em nossa estima. Pois tudo o que pertence a este mundo participa de
sua natureza, por isso ser o mesmo tão transitório e passar tão depressa. Ele
mostra a falsidade e a fatuidade da confiança que é posta nas riquezas,
lembrando-nos que nossa posse delas é algo tão transitório que se assemelha a
uma coisa desconhecida. Pois quando imaginamos tê-las, como um relâmpago
escapam de nossas mãos. Quão estulto é colocarmos nelas nossa esperança!
Mas
no Deus vivo. A pessoa que chega a compreender isso não
encontrará dificuldade em desvencilhar sua confiança das riquezas. Porquanto é
unicamente Deus quem provê todas as coisas para os propósitos necessários de
nossa vida, e quando depositamos nossa confiança nas riquezas, na verdade
estamos transferindo para elas as prerrogativas que pertencem exclusivamente a
Deus. Note-se o contraste implícito ao dizer que Deus distribui liberalmente
com todos. O significado é o seguinte: mesmo que possuamos plena e rica
abundância de todas as coisas, na verdade tudo quanto possuímos procede da
mercê divina. E tão-somente sua generosidade que nos supre de tudo quanto
carecemos. Segue-se que é um terrível equívoco confiar nas riquezas e não depender
completamente da mercê divina, na qual há para nós suficiência, alimento e tudo
mais. Portanto, concluímos que somos proibidos de confiar nas riquezas, não
apenas com base no fato de que pertençam só a esta vida mortal, mas também
porque não passam de fumaça. Nossa nutrição não procede apenas do pão
[material], mas de toda a munificência divina [Dt 8.3].
Ao dizer, ricamente, ele, [eisapolausin], ele está descrevendo a
imensa liberalidade divina em nosso favor, em favor de toda a humanidade e em
favor de todos os seres irracionais; sua mercê se estende para muito além de
nossas necessidades [SI 36.6].

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17 agosto, 2010
0 Morrendo e Ressuscitando com Cristo - João Calvino
A MORTIFICAÇÃO DA CARNE E A
VIVIFICAÇÃO DO ESPÍRITO RESULTAM DA PARTICIPAÇÃO DA MORTE E DA RESSURREIÇÃO DE
CRISTO, A REGENERAÇÃO REAL OU ARREPENDIMENTO
Uma e outra, isto é, a
mortificação da carne e a vivificação do Espírito, nos é comunicada em virtude
da participação de Cristo. Ora, se de sua morte compartilhamos verdadeiramente,
“nosso velho homem é crucificado por seu poder e morre o corpo do pecado” [Rm
6.6], para que não floresça por mais tempo a corrupção da primeira natureza. Se
somos participantes de sua ressurreição, por ela somos despertados para a
novidade de vida que corresponda à justiça de Deus. Portanto, interpreto o
arrependimento com uma palavra: regeneração, cujo objetivo não é outro senão
que em nós seja restaurada a imagem de Deus, a qual fora empanada e quase apagada
pela transgressão de Adão.
Assim o ensina o Apóstolo,
quando diz: “Nós, porém, de face descoberta, refletindo como em um espelho a
glória do Senhor, somos transformados à mesma imagem, de glória a glória, como
pelo Espírito do Senhor” [2Co 3.18]. Igualmente: “Sede renovados no espírito de
vosso entendimento e revesti-vos do novo homem que foi criado, segundo Deus, na
justiça e santidade da verdade” [Ef 4.23, 24]. Também, em outro lugar:
“Revestindo-vos do novo homem que se renova segundo o conhecimento e a imagem
daquele que o criou” [Cl 3.10]. Portanto, mediante esta regeneração, somos pela
mercê de Cristo restaurados à justiça de Deus, da qual havíamos decaído através
de Adão, modo pelo qual ao Senhor agrada restaurar integralmente a todos
quantos adota para a herança da vida. E esta restauração, na verdade, não se
consuma em um momento, ou em um dia, ou em um ano; antes, através de avanços
contínuos, ainda que amiúde de fato lentos, Deus destrói em seus eleitos as
corrupções da carne, os limpa de sua imundície e a si os consagra por templos, renovando-lhes
todos os sentimentos à verdadeira pureza, para que se exercitem no arrependimento
toda sua vida e saibam que não há nenhum fim para esta luta senão na morte.
Quão maior é a improbidade de
certo paroleiro e apóstata impuro, Estáfilo, que vocifera dizendo que o estado
da presente vida é por mim confundido com a glória celeste, enquanto de Paulo
interpreto a imagem de Deus como sendo “verdadeira santidade e justiça” (Ef
4.24). Como se, realmente, ao definir-se alguma coisa não se deva buscar sua
própria inteireza e perfeição. Ao afirmar que Deus restaura em nós sua imagem,
não nego que o faça progressivamente; mas que, à medida que cada um avança, se
aproxima mais da semelhança de Deus, e que tanto mais resplandece nele essa
imagem de Deus23 [2Co 4.16]. Para que os fiéis cheguem a este ponto, Deus lhes
assinala o caminho do arrependimento pelo qual percorram pela vida inteira.

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13 agosto, 2010
0 O Domínio do Pecado – João Calvino
O
PECADO INFESTA E DOMINA A TODO O SER HUMANO
Por essa razão eu disse que,
desde que Adão se apartou da fonte da justiça, todas as partes da alma vieram a
ser possuídas pelo pecado. Pois não só o seduziu um desejo inferior; ao
contrário, a nefanda impiedade ocupou a própria cidadela da mente, e o orgulho
penetrou ao mais recôndito do coração, de sorte que é improcedente e estulto
restringir a corrupção que daí emanou apenas ao que chamam impulsos sensuais,
ou chamar “foco de fogo” que atrai, excita e arrasta o pecado somente a parte
que compreende a sensualidade.
Nisto Pedro Lombardo pôs à
mostra crassa ignorância, ou, seja, buscando e investigando a sede do pecado,
afirma que ela está na carne, o que, a seu ver, Paulo atesta, ainda que não de
forma estrita, mas porque o pecado se faz ainda patente na carne. Aliás, é como
se Paulo tivesse em mira apenas uma parcela da alma e não a natureza toda, a
qual se opõe à graça supernatural! E Paulo remove toda dúvida, ensinando que a
corrupção não reside apenas em uma parte; ao contrário, que nada há incontaminado ou inafetado
por sua mortífera peçonha. Ora, discorrendo a respeito da natureza corrupta,
Paulo não só condena os desordenados impulsos dos apetites, que se fazem explícitos, mas
sobretudo insiste em que a mente está entregue à cegueira e o coração, à depravação
[Ef 4.17, 18]. E esse terceiro capítulo da Epístola aos Romanos outra coisa não
é senão uma descrição do pecado original.
Isto se mostra mais claramente
à luz da renovação regeneracional. Ora, o termo espírito, que se contrapõe a
velho homem e carne, não denota simplesmente a graça pela qual é retificada a
parte inferior ou sensória da alma; pelo contrário, abrange a plena reforma de
todas as partes. E por isso Paulo prescreve não apenas que se reduzam a nada os
apetites vis, mas ainda que sejamos renovados no espírito de nosso entendimento
[Ef 4.23], assim como também, em outra passagem [Rm 12.2], insta a que sejamos
transformados em novidade da mente. Do quê se segue que aquela parte em que
refulge sobremaneira a excelência e nobreza da alma foi não só ferida, mas até
corrompida, a tal ponto que tem necessidade não apenas de ser curada, mas
também de revestir-se de natureza quase que nova.
Até onde o pecado domina, não
só à mente, mas ainda ao coração, veremos de imediato. Aqui tive o propósito de
apenas sumariamente abordar o fato de que o homem inteiro, da cabeça aos pés,
foi, como por um dilúvio, de tal modo assolado, que nenhuma parte ficou isenta
de pecado, e em conseqüência tudo quanto dele procede deve ser imputado ao
pecado. Como Paulo diz [Rm 8.6, 7]: todos os afetos ou cogitações da carne são
inimizades contra Deus; e por isso, morte.

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12 agosto, 2010
0 A Natureza Humana é totalmente Depravada – João Calvino
O homem, porém, não se pode
melhor conhecer, em uma e outra parte da alma, a não ser que se se ponha à
vista com seus títulos, pelos quais é caracterizado pela Escritura. Se todos
forem descritos com estas palavras de Cristo: “O que é nascido da carne é
carne” [Jo 3.6], como é fácil comprovar, o homem é convencido de ser uma
criatura mui miserável. Ora, o Apóstolo atesta que a inclinação da carne é morte,
uma vez que é inimizade contra Deus, e por isso não se sujeita à lei de Deus, nem
pode sujeitar-se [Rm 8.6, 7].
Porventura a carne está a tal
ponto pervertida, que com toda sua inclinação exerça inimizade contra Deus, que
não possa conformar-se à justiça da lei divina, que nada, afinal, possa exibir
senão ocasião de morte? Pressupõe-se, então, que nada há na natureza humana
senão carne, e que daí não se pode extrair algo de bom. Mas dirás que o termo
carne se refere apenas à parte sensória, não à parte superior da alma. Isto,
porém, se refuta plenamente à luz das palavras não só de Cristo, como também do
Apóstolo. O postulado do Senhor é: ao homem importa nascer de novo [Jo 3.3],
porque ele é carne [Jo 3.6]. Não está preceituando nascer de novo em relação ao
corpo. Mas, na alma nada nasce de novo, se apenas alguma porção lhe for reformada;
ao contrário, toda ela se renova. E isto é confirmado pela antítese estabelecida
em uma e outra destas duas passagens, pois de tal modo o Espírito é contrastado
com carne, que nada é deixado entre ambos. Logo, tudo que no homem não é
espiritual, segundo este arrazoado, diz-se ser carnal. Nada, porém, temos do Espírito
senão pela regeneração. Portanto, tudo quanto temos da natureza é carne.
Na verdade, tanto quanto em
outras circunstâncias, se pudesse haver dúvida acerca desta matéria, a mesma
nos é dirimida por Paulo, onde, descrito o velho homem, que dissera ter sido
corrompido pelas concupiscências do erro, ordena que sejamos renovados no
espírito de nossa mente [Ef 4.22, 23]. Vês que ele não situa os desejos
ilícitos e depravados apenas na parte sensorial, mas também na própria mente, e
por isso requer que lhe haja renovação. E de fato, pouco antes pintara esta imagem
da natureza humana, que mostra que estamos corrompidos e depravados em todas as
nossas faculdades.
Ora, ele escreve que todos os
gentios andam na vaidade de sua mente, estão entenebrecidos no entendimento,
alienados da vida de Deus por causa da ignorância que neles há, e da cegueira
de seu coração [Ef 4.17, 18], não havendo a mínima dúvida de que isso se aplica
a todos aqueles a quem o Senhor ainda não reformou para a retidão, seja de sua
sabedoria, seja de sua justiça. O que se faz ainda mais claro da comparação
adjunta logo em seguida, onde adverte aos fiéis de que não haviam assim aprendido
a Cristo [Ef 4.20]. Seguramente concluímos destas palavras que a graça de
Cristo é o único remédio pelo qual somos libertados dessa cegueira e dos males
daí resultantes.
Ora, também assim havia Isaías
vaticinado acerca do reino de Cristo, quando o Senhor prometia que haveria de
ser por luz sempiterna à sua Igreja [Is 60.19], enquanto, a esse mesmo tempo,
trevas cobririam a terra e escuridão cobriria os povos [Is 60.2]. Quando
testifica haver de despontar na Igreja a luz de Deus, fora da Igreja certamente
nada deixa, a não ser trevas e cegueira. Não mencionarei, uma a uma, as
passagens que a respeito da vacuidade do homem se contam por toda parte,
especialmente nos Salmos e nos Profetas. Incisivo é o que Davi escreve:
“Certamente os homens de classe baixa são vaidade, e os homens de ordem elevada
são mentira” [Sl 62.9]. Traspassado de pesado dardo lhe é o entendimento,
quando todos os pensamentos que daí procedem são escarnecidos como estultos,
frívolos, insanos, pervertidos.

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11 agosto, 2010
0 A Única Atitude que Convém – João Calvino
O SENSO
DE NOSSA DEPENDÊNCIA DE DEUS É O CAMINHO DA VITÓRIA
Todo aquele que se vê
profundamente acabrunhado e consternado pela consciência de sua miséria,
pobreza, nudez, ignomínia, tem assim avançado extraordinariamente no
conhecimento de si próprio. Ora, não há perigo de que o homem prive a si mesmo
excessivamente, desde que aprenda que se deve recobrar em Deus o que em si
mesmo falta. Com efeito, na verdade nem pode o homem a si presumir um tantinho
de nada além de seu direito, sem que não só se perca em vã confiança pessoal,
mas ainda, transferindo a si a honra divina, se faça réu de monstruoso
sacrilégio. Evidentemente, sempre que nos vem à mente essa ânsia de apetecer
alguma coisa que nos pertença e não a Deus, temos de compreender que tal
pensamento nos é inspirado pelo que induziu nossos primeiros pais a quererem
ser semelhantes a Deus, conhecendo o bem e o mal [Gn 15].
Caso seja a palavra do Diabo
que exalta o homem em si mesmo, não lhe demos lugar, a não ser que queiramos
receber conselho do inimigo. Sem dúvida é grato possuir tanto de poder próprio
que hajas de confiar em ti mesmo. Mas, para que não sejamos seduzidos a esta vã
confiança pessoal, que sejamos atemorizados por tantas declarações graves da
Escritura pelas quais somos severamente consternados, a saber: “Maldito é
aquele que confia no homem e põe a carne por seu braço” [Jr 17.5]; igualmente:
“Deus não se deleita na força do cavalo e não lhe comprazem as pernas do homem,
mas se afeiçoa nos que o temem, nos que se entregam à sua bondade” [Sl 147.10, 11];
também: “É ele que dá alento ao cansado e ao sem forças aumenta o vigor, que
faz com que os jovens se fatiguem e se abatam, os moços de exaustão tombem,
porém os que só nele esperam renovem suas forças” [Is 40.29-31].
Todas estas referências
conduzem a isto: que não nos apoiemos na convicção de nossa própria força, por
mínima que seja tal convicção, se queremos que Deus nos seja propício, o qual
resiste aos soberbos, porém dá graça aos humildes [Tg 4.6; 1Pe 5.5; Pv 3.34].
Então, em seguida venham à memória estas promessas: “Derramarei água sobre o solo
sedento, e rios sobre a terra seca” [Is 44.3]; de igual modo: “Vinde às águas
todos os que tendes sede” [Is 55.1], as quais atestam que, para receber as
bênçãos de Deus, a ninguém se admite, senão os que se consomem sob o senso de sua
pobreza. Com isso não se pretere promessa tal como esta de Isaías: “O sol já
não ser-te-á para iluminar durante o dia, nem a lua para iluminar durante a
noite; ao contrário, o Senhor ser-te-á por luz sempiterna” [Is 60.19].
Certamente, o Senhor não subtrai de seus servos o fulgor do sol ou da lua; mas,
visto que somente ele quer ser glorioso neles, afasta para longe deles a
confiança mesmo posta naquelas coisas que em sua opinião são mui excelentes.
VERDADEIRA
HUMILDADE: A ÚNICA ATITUDE QUE NOS CONVÉM
Sempre me agradou sobremaneira
esta ponderação de Crisóstomo: “A humildade é o fundamento de nossa
filosofia.”40 Contudo, mais ainda esta de Agostinho: “Da mesma forma”, diz ele,
“que aquele orador, indagado qual seria o primeiro entre os preceitos da eloqüência,
respondeu: a elocução; como o segundo: a elocução; também o terceiro: a
elocução; assim, se me interrogas acerca dos preceitos da religião cristã,
primeiro, segundo e terceiro, me agradaria responder sempre: a humildade.”
Todavia, como o declara em
outro lugar, não considera como humildade quando, cônscio de alguma porção de
virtude em si próprio, o homem não cede ao orgulho; mas, ao contrário, quando
ele se sente verdadeiramente que nenhum refúgio possui senão na humildade.
“Ninguém”, diz ele, “se lisonjeie. Por si mesmo não passa de um satanás. Do que
é aquinhoado, isso ele o tem somente de Deus. Pois, que tens de teu senão o
pecado? Toma para ti o pecado, porque é teu, já que a retidão é de Deus.”42
Ainda: “Por que tanto se presume da possibilidade de nossa natureza?
Está chagada, dilacerada,
arruinada, perdida. Tem ela necessidade de verdadeira confissão, não de falsa
defesa.”43 De novo: “Quando alguém reconhece que em si mesmo nada é e nenhuma
ajuda tem de si próprio, dentro de si estão quebradas as armas, serenados estão
os embates. Mas, é indispensável que todas as armas da impiedade sejam
despedaçadas, sejam esmigalhadas, sejam consumidas pelo fogo, e permaneças
inerme, nenhum recurso tenhas em ti mesmo. Quanto mais fraco és em ti, tanto
mais te sustém o Senhor.” Assim, na
consideração do Salmo 70, proíbe que nos lembremos de nossa justiça pessoal,
para que conheçamos a justiça de Deus; e mostra que Deus nos recomenda sua
graça de tal modo que saibamos que nós nada somos, que nos mantemos firmes
apenas pela misericórdia de Deus, já que de nós mesmos nada somos senão maus.
Portanto, neste ponto não
contendamos com Deus acerca de nosso direito, como se perdêssemos em nosso
proveito tudo quanto a ele atribuímos. Ora, se nossa humildade é sua exaltação,
assim a confissão de nossa humildade tem sua misericórdia como remédio
preparado. Contudo, nem pretendo que um homem que não se deixa assim persuadir
ceda espontaneamente; e se tem alguma capacidade, que dela desvie a mente para
que se sujeite à verdadeira humildade. Pelo contrário, pretendo que, debelada a
enfermidade – do amor de si mesmo e do prazer por contenciosidade], obcecado
pela qual pensa em si mais do que convém [G1 6.3], se contemple honestamente no
veraz espelho da Escritura [Tg 1.22-25].

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10 agosto, 2010
2 A Inconveniência da Expressão Livre-Arbítrio
Caso se admita isto, estará
fora de questão que o livre-arbítrio não é bastante ao homem para as boas
obras, a não ser que seja ajudado pela graça, e na verdade pela graça especial,
graça esta de que os eleitos só são dotados mediante a regeneração.
Logo, deixo de levar em conta
os fanáticos que bradam que a graça é distribuída a todos de modo igual e de
forma indistinta. Isto, entretanto, ainda não está claro: se porventura o homem
esteja de todo privado da capacidade de fazer o bem, ou tenha para isso alguma
capacidade, ainda que diminuta e precária, que certamente nada possa de si, todavia,
em auxiliando-a a graça, desempenhe também ela mesma sua função. Tendo em mira
decidir isto, o Mestre das Sentenças ensina que nos é necessária dupla graça
para que nos tornemos capazes para uma boa obra. A uma ele chama de graça
operante, mercê da qual resulta que queiramos o bem eficazmente; cooperante, a
outra, que acompanha a boa vontade, coadjuvando-a.
Nesta divisão desagrada-me
isto: que, enquanto atribui à graça de Deus o eficaz desejo do bem, dá a
entender que, já de sua própria natureza, de certo modo, ainda que
ineficazmente, o homem deseja o bem. Assim Bernardo, asseverando que de fato a
boa vontade é obra de Deus, no entanto concede isto ao homem: que ele deseja,
de moto próprio, esta espécie de boa vontade. Isto, entretanto, está longe da
mente de Agostinho, de
quem, todavia, Lombardo deseja
parecer haver tomado essa distinção entre graça operante e graça cooperante.
No segundo membro desse binômio
distincional ofende-me a ambigüidade, a qual tem gerado interpretação
pervertida. Pois pensaram que cooperamos com a segunda dessas modalidades da
graça de Deus, visto ser nosso direito ou de tornar inútil a primeira graça,
rejeitando-a, ou de confirmá-la, seguindo-a obedientemente.
Isto o autor da obra A Vocação
dos Gentios exprime desta forma: os que fazem uso do juízo da razão são livres
para apartar-se da graça, de sorte a ser mérito o não haver-se apartado; e de
sorte que, o que não se pode fazer, senão mediante a assistência do Espírito,
se credita aos merecimentos daqueles de cuja vontade isto não pôde ser feito.
Pareceu-me bem abordar, de
passagem, estes dois pontos, para que o leitor já veja quanto discordo dos
escolásticos mais sóbrios. Ora, dos sofistas mais recentes difiro em extensão
ainda maior, a saber, quanto estão distanciado da antigüidade. Como quer que
seja, desta divisão, contudo, compreendemos em que medida eles têm conferido o
livre-arbítrio ao homem. Pois Lombardo sentencia, afinal, que temos o
livre-arbítrio não que, em relação ao bem e ao mal, estejamos capacitados para
ou fazer ou pensar de modo igual, mas apenas que somos liberados de compulsão, liberdade
que, segundo ele, não é impedida, ainda que sejamos depravados, e servos do
pecado, e nada possamos senão pecar.
A Inconveniência
da Expressão Livre-Arbítrio
Desse modo, pois, dir-se-á que
o homem é dotado de livre-arbítrio: não porque tenha livre escolha do bem e do
mal, igualmente; ao contrário, porque age mal por vontade, não por efeito de
coação. Por certo que isto soa muito bem. Mas, a que servia etiquetar com
título tão pomposo coisa de tão reduzida importância? Excelente liberdade, sem
dúvida, seria se com efeito o homem não fosse compelido pelo pecado a servi-lo;
se, no entanto, é ( – escravo por querer; escravo por vontade], de sorte que a
vontade lhe é mantida amarrada pelas peias do pecado! Certamente que abomino (machías)
– contendas de palavras - com as quais a
Igreja em vão se afadiga, porém julgo ser religiosamente preciso evitar estas
palavras que soam algo absurdo, principalmente quando induzem perniciosamente ao
erro. Indago, porém, quão poucos são os que, em ouvindo atribuir-se livre-arbítrio
ao homem, imediatamente não o concebam ser senhor tanto de sua mente quanto da
vontade, tanto que possa de si mesmo vergar-se para uma e outra dessas duas
partes?
Contudo, alguém dirá que é
preciso afastar perigo desta natureza, se cuidadosamente o povo em geral for
informado quanto ao exato sentido desta expressão. Na realidade, porém, como o
coração humano propende espontaneamente para a falsidade, de uma palavrinha só
o erro sorverá mais depressa do que faz extenso discurso em prol da verdade.
Nesta própria expressão temos deste fato mais indisputável experiência do que
seria de se almejar. Ora, enquanto se apega à etimologia do termo, deixada de
lado aquela interpretação dos escritores antigos, quase toda a posteridade tem
sido arrastada à ruinosa confiança pessoal.

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09 agosto, 2010
0 Este é o meu Sangue – João Calvino
Quando, porém, dizemos que pelo
mérito de Cristo nos foi alcançada a graça, entendemos isto: fomos purificados
por seu sangue e sua morte foi uma expiação pelos pecados. “Seu sangue nos
purifica do pecado” [1Jo 1.7]. “Este é meu sangue derramado para remissão dos
pecados” [Mt 26.28]. Se este é o efeito de seu sangue derramado, que nossos
pecados não nos sejam imputados, segue-se que, com este preço, fez-se satisfação
ao juízo de Deus. Ao que é pertinente esta afirmação de João Batista: “Eis o
cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” [Jo 1.29]. Ora, ele está
contrapondo Cristo a todos os sacrifícios da lei, de sorte que só nele se ensina
estar cumprido o que aquelas figuras representaram.
Sabemos, porém, o que Moisés
disse repetidas vezes: a iniqüidade será expiada, o pecado será apagado e
remitido. Afinal, somos excelentemente ensinados nas velhas figuras qual é a
força e eficácia da morte de Cristo. E, na Epístola aos Hebreus, o Apóstolo
explica esta matéria, assumindo habilmente este princípio, a saber: que “não há
remissão de pecados à parte de derramamento de sangue” [Hb 9.22]. Do que
conclui que “Cristo apareceu, uma vez por todas, para o cancelamento do pecado através
de seu sacrifício” [Hb 9.26]. De igual modo: “Cristo foi imolado para que levasse
os pecados de muitos” [Hb 9.28]. Dissera, porém, antes que “não mediante sangue
de bodes ou de novilhos, mas através de seu próprio sangue, entrara ele, uma vez
para sempre, nos lugares santos, alcançando assim eterna redenção” [Hb 9.12].
Entretanto, de imediato arrazoa
desta maneira: “Se o sangue de uma novilha santifica, segundo a pureza da
carne, muito mais, pelo sangue de Cristo, são purificadas as consciências de
obras mortas” [Hb 9.13, 14]. E assim prontamente se patenteia que se reduz,
demasiadamente, a graça de Cristo, se não concedemos a seu sacrifício o poder
de expiar, de aplacar e de propiciar, como acrescenta pouco depois: “Este é Mediador
de um Novo Testamento, de sorte que, intervinda a morte para redenção dos
delitos precedentes, que persistiam sob a lei, recebam os que foram chamados a promessa
de uma herança eterna” [Hb 9.15].
Entretanto, é conveniente
ponderar, especialmente, o símile que é descrito por Paulo, de que Cristo se
fez maldição por nós etc. [G1 3.13]. Ora, foi supérfluo, tanto quanto absurdo,
que Cristo fosse onerado de maldição, a não ser que, pagando integralmente o
que outros deviam, ele assim estava lhes adquirindo justiça. Claro é também o
testemunho de Isaías, de que “o castigo de nossa paz foi posto sobre ele e por
sua pisadura resultou-nos em cura” [Is 53.5]. Pois, a não ser que Cristo
fizesse propiciação por nossos pecados, não se diria ter ele aplacado a Deus,
recebido em si o castigo a que estávamos sujeitos. A que se conforma o que no
mesmo lugar se lê:
“Por causa da transgressão de
meu povo, eu o feri” [Is 53.8]. Acrescenta-se também a interpretação de Pedro,
que nada deixa ambíguo: que “no madeiro ele carregou nossos pecados” [1Pe
2.24]. Pois ele está afirmando que foi lançado sobre Cristo o peso da
condenação de que fomos aliviados.

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05 agosto, 2010
0 Honrando os Pais – O 5º Mandamento – João Calvino
“Honra a teu pai e a tua mãe, para que tenhas longa vida
sobre a terra que o Senhor teu Deus te dá” (Ex 20.12)
Teor e
Aplicação do Quinto Mandamento
A finalidade deste mandamento
é: uma vez que ao Senhor Deus apraz a manutenção do que dispôs, importa que nos
sejam invioláveis os graus de eminência por ele ordenados. A síntese, portanto,
será: que usemos de deferência para com aqueles que o Senhor nos fez superiores
e os tenhamos em honra, em obediência e em grato reconhecimento. Donde se segue
a proibição: que não denigremos nada de sua dignidade, quer por desdém, quer
por contumácia, ou por ingratidão.
Ora, o termo honra assim se
patenteia amplamente na Escritura. Por exemplo,quando o Apóstolo diz [1Tm 5.17]
que os presbíteros que presidem bem sejam dignos de dobrada honra, entende que
se lhes deve não somente reverência, mas ainda a remuneração que seu ministério
merece. Mas, visto que este mandamento referente a nossa sujeição aos
superiores se põe fortemente em conflito com a depravação do espírito humano,
que por isso é ele intumescido do anseio de exaltação, a contragosto se deixa
sujeitar, foi proposta por exemplo essa forma de superioridade a qual, por
natureza, é mais para estimar-se e menos para invejar-se, porque assim podia
mais facilmente abrandar e dobrar nosso ânimo ao hábito de submissão. Logo, o
Senhor gradualmente nos acostuma a toda legítima sujeição mediante essa forma que
é a mais fácil de tolerar-se, uma vez que, de todas, a razão é a mesma.
Com efeito, compartilha seu
nome com aqueles a quem atribui eminência, até onde se faz necessário para que
ela seja preservada. A ele tão-somente convém, segundo a Escritura, os títulos
Pai, Deus e Senhor, de modo que, sempre que ouvirmos qualquer um deles, nosso
entendimento seja tocado com o senso de sua majestade.
Portanto, aqueles a quem faz
participantes desses títulos ilumina-os como que com uma centelha de seu
fulgor, de sorte que sejam, cada um, dignos de honra em conformidade com sua
posição de eminência. Desse modo, aquele que nos é pai, é próprio reconhecer
nele algo divinal, porquanto não sem causa é portador do título divino. De
igual modo, aquele que é um príncipe, ou aquele que é um senhor, tem com Deus
alguma comunhão de honra.
O
PRINCÍPIO GERAL, ILUSTRADO NA REVERÊNCIA PARA COM OS PAIS
Em vista desse fato, não deve
ser ambíguo que o Senhor aqui estatui uma regra universal, isto é, conforme
tomamos conhecimento de que, por sua ordenação, alguém nos foi posto como
superior, que o honremos com reverência, obediência e reconhecimento, e com
quantas formas de servi-lo pudermos. Nem vem ao caso se aqueles a quem esta
honra se defere são dignos ou indignos, porquanto, não importa o que sejam,
afinal não alcançaram esta posição, entretanto, sem a providência de Deus, em
função da qual o próprio Legislador quis que fossem honrados. Contudo,
preceituou expressamente acerca da reverência de nossos pais, que nos trouxeram a esta vida, com o que nos deve
ensinar, de certa maneira, a própria natureza. Pois são monstros, não seres
humanos, os que infringirem o poder paterno por desrespeito ou insubordinação!
Por isso, o Senhor ordena que sejam mortos todos os insubmissos aos pais, como
indignos do benefício da luz, já que não reconhecem àqueles por cuja obra a têm
alcançado.
E, de fato, de variadas
complementações da lei se evidencia ser verdadeiro o que acabamos de assinalar,
ou, seja: que há três expressões da honra de que aqui se fala, a saber:
reverência, obediência e reconhecimento. A primeira dessas, a reverência, o
Senhor a sanciona quando preceitua que seja entregue à morte aquele que maldisser
ao pai ou à mãe [Ex 21.17; Lv 20.9; Pv 20.20], uma vez que aí castiga o menosprezo
e a insolência. A segunda, a obediência, sanciona-a quando decreta a pena de
morte contra os filhos contumazes e rebeldes [Dt 21.18-21]. Diz respeito à terceira
a gratidão ou reconhecimento, o que Cristo diz: que é do mandamento de Deus que
façamos o bem a nossos pais [Mt 15.4-6]. E quantas vezes Paulo faz menção deste
mandamento, entende que nele se requerer obediência [Ef 6.1-3; Cl 3.20].

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03 agosto, 2010
0 O Pecado de Adão e sua Posteridade – João Calvino
Como a vida espiritual de Adão
era permanecer ele unido e ligado a seu Criador, assim também, ao alienar-se
dele veio-lhe a morte da alma. Portanto, não surpreende se, por sua defecção,
afundou na ruína sua posteridade aquele que perverteu, no céu e na terra, toda
a ordem da própria natureza. “Gemem todas as criaturas”, diz 5. Primeira
edição: “Se vil e execrável ofensa é a apostasia, pela qual o homem se Paulo, “não por sua própria
vontade, sujeitas à corrupção” [Rm 8.20, 22]. Caso se busque a causa disso, não
há dúvida de que estão a sofrer parte daquele castigo que o homem mereceu, para
cujo proveito elas foram criadas. Portanto, quando, de alto a baixo, por sua
culpa atraiu a maldição que grassa por todos os recantos do mundo, nada há de
ilógico se ela foi propagada a toda sua descendência. Logo, depois que a imagem
celeste foi nele obliterada, não sofreu sozinho esta punição que, em lugar de
sabedoria, poder, santidade, verdade, justiça, ornamentos de que fora ataviado,
lhe sobreviessem as mais abomináveis pragas: cegueira, fraqueza, impureza,
fatuidade, iniqüidade, mas ainda nas
mesmas misérias enredilhou e submergiu sua progênie.
Esta é a corrupção hereditária
que os antigos designaram de “pecado original”, entendendo pelo termo pecado a
depravação de uma natureza antes disso boa e pura, matéria a respeito da qual
muita lhes foi a contenção, uma vez que nada seja mais remoto do consenso geral
que pela culpa de um só todos se façam culpados e, assim, o pecado se torne
comum a todos. Esta parece ter sido a razão por que os doutores mais antigos da
Igreja abordaram este assunto de forma tão obscura, pelo menos por que o
explanaram menos lucidamente do que se fazia necessário.
Contudo, esta relutância não
pôde impedir que Pelágio entrasse em cena, cuja profana invenção foi haver Adão
pecado tão-somente para seu próprio dano, mas que aos descendentes nada afetou.
Naturalmente, com esta artimanha de encobrir a enfermidade, Satanás tentou
torná-la incurável. Como, porém, pelo claro testemunho da Escritura se mostrasse
que o pecado foi transmitido do primeiro homem a toda a posteridade [Rm 5.12],
sofismavam haver-se transmitido por imitação, não por geração. Portanto, bons
homens, e acima dos demais Agostinho, nisto laboraram afincadamente para
mostrar que não somos corrompidos mediante impiedade adquirida; ao contrário,
trazemos depravação ingênita desde o ventre materno.
O não reconhecimento desse fato
foi o supremo descaramento. Mas ninguém se surpreenderá da temeridade dos pelagianos e
dos celestianos quem, pela leitura dos escritos daquele santo varão, Agostinho,
tenha percebido que monstros de perversa catadura foram eles em todos os demais
pontos.
Por certo que não é ambíguo o
que Davi confessa, a saber, ter sido gerado em iniqüidades e de sua mãe
concebido em pecado [Sl 51.5]. Não está ele aí a censurar as faltas do pai ou
da mãe; antes, para que melhor enalteça a bondade de Deus para consigo, faz
remontar a confissão de sua iniqüidade à própria concepção. Uma vez ser
evidente não ter sido isso peculiar a Davi, segue-se que sob seu exemplo se
denota a sorte comum do gênero humano.
Portanto, todos que descendemos
de uma semente impura, nascemos infeccionados pelo contágio do pecado. Na
verdade, antes que contemplemos esta luz da vida, à vista de Deus já estamos
manchados e poluídos. Pois, “quem do imundo tirará o puro?” Certamente, como
está no livro de Jó [14.4], ninguém!

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02 agosto, 2010
0 Desobediência, o Fator da Queda do Homem - João Calvino
Uma vez que não é um delito
leve, mas um crime abominável, aquele que Deus puniu com tanta severidade,
somos levados a considerar a própria natureza do pecado na queda de Adão, a
qual transmitiu a todo o gênero humano horrível punição de Deus.
É pueril o que tem sido
vulgarmente admitido quanto à intemperança da gula. Como se de fato, na
abstinência de apenas uma única espécie de fruta, tenha residido a suma e
essência de todas as virtudes, quando por toda parte sobejavam todas e quantas
delícias apetecíveis, e naquela abençoada fecundidade da terra lhe estava à mão
a fartar, não apenas abundância, como também variedade! Deve-se, portanto,
mirar mais alto, visto que a proibição da árvore do conhecimento do bem e do
mal foi um teste de obediência; de modo que, ao obedecer, Adão podia provar que
se sujeitava à autoridade de Deus, de livre e deliberada vontade. Com efeito, o
próprio nome da árvore evidencia que o propósito do preceito não era outro
senão que, contente com sua sorte, o homem não se alçasse mais alto, movido de
ímpia cobiça.
Mas a promessa mediante a qual
ele poderia fazer jus à vida eterna por todo tempo em que comesse da árvore da
vida, bem como, em contrário, o horrendo anúncio de morte, assim que provasse
da árvore do conhecimento do bem e do mal, visava a testar-lhe e a
exercitar-lhe a fé. Daqui, não é difícil concluir de que maneiras Adão provocou
a ira de Deus contra si.
Na verdade, não de forma
improcedente, pronuncia-se Agostinho,quando diz que o orgulho foi o princípio
de todos os males, porque, não houvesse a ambição impelido o homem acima do que
era próprio e justo, poderia ele permanecer em sua condição original. Contudo,
da própria natureza da tentação que Moisés descreve deve buscar-se definição
mais completa. Ora, uma vez que, por sua falta de fidelidade, a mulher é
afastada da Palavra de Deus pela sutileza da serpente, já se comprova que o princípio da queda foi a
desobediência. É o que também Paulo confirma, ensinando que, pela desobediência
de um só homem, todos se tornaram perdidos [Rm 5.19].
Entretanto, ao mesmo tempo é
preciso notar que o primeiro homem se alijou da soberania de Deus, porque não
só se fez presa aos engodos de Satanás, mas ainda, desprezando a verdade, se
desviou para a mentira. E de fato, desprezada a palavra de Deus, quebrantada
lhe é toda reverência, pois não se preserva de outra maneira sua majestade
entre nós, nem seu culto é mantido íntegro, a não ser enquanto atenciosamente
ouvirmos sua voz. Conseqüentemente, a raiz da queda foi a falta de fidelidade.
Mas, daqui emergiram ambição e
orgulho, aos quais foi adicionada ingratidão, porquanto, ao desejar mais do que
lhe fora concedido, ignobilmente Adão desdenhou a tão grande liberalidade de
Deus pela qual havia sido enriquecido. Na verdade, esta foi uma impiedade monstruosa,
a saber, a um filho da terra parecer pouco que fosse criado à semelhança de
Deus, se também não lhe fosse acrescentada a igualdade.
Se a apostasia, pela qual o
homem se subtrai ao mando de seu Criador, é uma vil e execrável ofensa, ou,
melhor dizendo, insolentemente lança de si o jugo, é debalde tentar atenuar o
pecado de Adão.5 Se bem que não foi simples apostasia; ao contrário, apostasia
associada com vis impropérios contra Deus, já que Adão e Eva subscrevem às
caluniosas insinuações de Satanás, com que acusa falsamente a Deus de mentira,
de inveja e de maldade.
Por fim, a falta de fidelidade
abriu a porta à ambição; a ambição, porém, foi a mãe da obstinação, de sorte
que os homens, alijando o temor de Deus, se arrojaram aonde quer que os levava
a cupidez. E assim corretamente ensina Bernardo, que a porta da salvação nos
está aberta quando, hoje, recebemos pelos ouvidos o evangelho, exatamente como,
quando se escancararam a Satanás, foi por essas janelas introduzida a morte.
Ora, jamais teria Adão ousado repudiar o imperativo de Deus, a não ser que não lhe desse
crédito à palavra. Era este, de fato, o melhor freio para adequadamente
regular-lhe todas as inclinações: que nada é melhor do que, mercê de estrita
obediência aos preceitos de Deus, amar a justiça; em seguida, que a meta final
da vida feliz é ser por ele amado. Portanto, arrebatado pelas blasfêmias do
Diabo, Adão aniquilou, quanto estava a seu alcance, toda a glória de Deus.

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