04 julho, 2010
0 Nós somos Bem-aventurados? - João Calvino
Bem-aventurado
é o homem que não anda no conselho dos ímpios, nem se detém na vereda dos
pecadores, nem se assenta junto com os escarnecedores. Seu deleite, porém, está
na lei de Jehovah; e em sua lei medita dia e noite.(Sl 1. 1,2)
1.
Bem-aventurado é o homem. A intenção do salmista, segundo expressei
acima, é que tudo estará bem com os devotos servos de Deus, cuja incansável
diligência é fazer progresso no estudo da lei divina. Já que o maior
contingente do gênero humano vive sempre acostumado a escarnecer da conduta dos
santos como sendo mera ingenuidade e a considerar seu labor como sendo total
desperdício, era de suma importância que o justo fosse confirmado na vereda da
santidade, pela consideração da miserável condição de todos os homens
destituídos da bênção de Deus e da convicção de que Deus a ninguém é favorável
senão àqueles que zelosamente se devotam ao estudo da verdade divina. Além do
mais, como a corrupção sempre prevaleceu no mundo, a uma extensão tal que o
caráter geral da vida humana nada mais é senão um perene afastar-se da lei de
Deus, o salmista, antes de declarar a ditosa sorte dos estudantes da lei
divina, os admoesta a se precaverem para não se deixar levar pela impiedade da
multidão que os cerca. Começando com uma declaração que revela sua aversão
pelos perversos, ele nos ensina quão impossível é para alguém aplicar sua mente
à meditação da lei de Deus, se antes não recuar e afastar-se da sociedade dos
ímpios. Eis aqui sem dúvida uma admoestação em
extremo necessária; porquanto
vemos quão irrefletidamente os homens se precipitam nas armadilhas de
Satanás; no mínimo, quão poucos, comparativamente, há que se protegem contra as
fascinações do pecado. Para que vivamos plenamente conscientes dos perigos que
nos cercam, necessário se faz recordar que o mundo está saturado de corrupção
mortífera, e que o primeiro passo para se viver bem consiste em renunciar a
companhia dos ímpios, de outra sorte é inevitável que nos contaminemos com sua
própria poluição.
Como o profeta, em primeiro
lugar, prescreve aos santos precaução contra as tentações para o mal,
seguiremos a mesma ordem. Sua afirmação, de que é bem-aventurado quem não se
enleia com os ímpios, é o que o comum sentimento e opinião do gênero humano
dificilmente admitirá; pois enquanto todos os homens naturalmente desejam e
correm após a felicidade, vemos com quanta determinação se entregam a seus
pecados; sim, todos aqueles que se afastam ao máximo da justiça, procurando
satisfazer suas imundas concupiscências, se julgam felizes em virtude de
alcançarem os desejos de seu coração. O profeta, ao contrário, aqui ensina que
ninguém pode ser devidamente encorajado ao temor e ao serviço de Deus, e bem
assim ao estudo de sua lei, sem que, convictamente, se persuada de que todos os
ímpios são miseráveis e que os que não se afastam de sua companhia se
envolverão na mesma destruição a eles destinada. Como, porém, não é fácil
evitar os ímpios com quem estamos misturados no mundo, sendo-nos impossível
distanciar-nos totalmente deles, o salmista, a fim de imprimir maior ênfase à
sua exortação, emprega uma multiplicidade de expressões.
Em primeiro lugar, ele nos
proíbe de andarmos em seu conselho; em segundo lugar, de determo-nos em sua
vereda; e, finalmente, de assentarmo-nos junto deles.
A suma de tudo é: os servos de
Deus devem diligenciar-se ao máximo por cultivar aversão pela vida dos ímpios.
Como, porém, a habilidade de Satanás consiste em insinuar seus embustes, de uma
forma muito astuta, o profeta, a fim de que ninguém se deixe insensivelmente
enganar, mostra como paulatinamente os homens são ordinariamente induzidos a
desviar-se de seu reto caminho. No primeiro passo, não se precipitam em franco
desprezo a Deus; mas, tendo uma vez começado a dar ouvidos ao mau conselho,
Satanás os conduz, passo a passo, a um desvio mais acentuado, até que se lançam
de ponta cabeça em franca transgressão. O profeta, pois, começa com conselho,
termo este, a meu ver, significando a perversidade que ainda não se exteriorizou
abertamente. A seguir ele fala de venda, o que deve ser tomado no sentido de
habitual modo ou maneira de viver. E coloca no ápice da ilustração o assento,
uma expressão metafórica que designa a obstinação produzida pelo hábito de uma
vida pecaminosa. Da mesma forma, também, devem-se entender os três verbos:
andar, deter e assentar. Quando uma pessoa anda voluntariamente em consonância
com a satisfação de suas corruptoras luxúrias, a prática do pecado o enfatua
tanto que, esquecido de si mesma, se torna cada vez mais empedernida na
perversidade, o que o profeta denomina de deter-se no caminho dos pecadores.
Então, por fim, segue-se uma desesperada obstinação, a qual o profeta expressa
usando a figura assentar-se. Se porventura existe a mesma gradação nas palavras
hebraicas □'W1, reshaim, CPXDn, chataim e D^b, Ietsimy ou seja, um aumento
gradual do mal, deixo a critério de outrem. A meu ver, tudo indica que não há,
a não ser, talvez, na última palavra. Pois aqueles que se denominam de
escarnecedores, tendo-se desfeito de todo o temor de Deus,
cometem pecado sem qualquer restrição, na esperança de escapar impunemente, e
sem compunção ou temor se divertem do juízo de Deus como se jamais houvesse um
dia em que serão chamados a prestar-lhe contas. O termo hebraico □,,$an,
chataim, significando a perversidade franca, é mui apropriadamente associado ao
termo vereda, o qual significa uma professa e habitual maneira de viver. Ora,
se nos dias do salmista necessário se fazia que os devotos adoradores de Deus
evitassem
a companhia dos ímpios, a fim de manterem sua vida bem estruturada, quanto mais
no tempo presente, quando o mundo se transformou em algo muitíssimo mais
corrupto, nosso dever é evitar criteriosamente todas as ameaças da sociedade,
para que nos conservemos incontaminados de todas as suas impurezas. O profeta,
contudo, não só prescreve aos fiéis que se mantenham à distância dos ímpios,
temendo ser contaminados por eles, senão que sua admoestação implica ainda que
cada um seja prudente, a fim de que não se corrompa e nem se entregue à
impiedadc. Mesmo que uma pessoa não tenha ainda contraído todo o aviltamento
provindo dos maus exemplos, no entanto é possível que se assemelhe aos
perversos, ao imitar espontaneamente seus hábitos corruptos.
No
segundo versículo, o salmista não declara simplesmente ser
bem-aventurado aquele que teme a Deus, como faz em outros passos, senão que
designa o estudo da lei como sendo a marca da piedade, nos ensinando que Deus
só é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada ura
a liberdade de codificar um sistema de religião ao sabor de sua própria
inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra de Deus.
Quando Davi, aqui, fala da ki, não se deve deduzir como se as demais partes da
Escritura fossem excluídas, mas, antes, visto que toda a Escritura outra coisa
não é senão a exposição da lei, ela é como a cabeça sob a qual se compreende
todo o corpo. O profeta, pois, ao enaltecer a lei, inclui todo o restante dos
escritos inspirados. É mister, pois, que ele seja compreendido como a exortar
os fiéis a meditarem também nos Salmos. Ao caracterizar o santo se deleitando
na lei do Senhor, daí podemos aprender que a obediência forçada ou servil não é
de forma alguma aceitável diante de Deus, e que só são dignos estudantes da lei
aqueles que se chegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas
instruções, não considerando nada mais desejável e delicioso do que extrair
dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditação
nela, o que o profeta menciona na última cláusula do versículo; pois todos
quantos são verdadeiramente impulsionados pelo amor à lei devem sentir prazer
no diligente estudo dela.
Ele será como uma árvore
plantada junto a ribeiros de águas, que produzirá seu fruto na estação própria,
cujas folhas não murcharão, e tudo quanto fizer prosperará.
Aqui, o salmista ilustra, e ao
mesmo tempo confirma pelo uso de metáfora, a afirmação feita no versículo
precedente; pois ele mostra em que sentido os que temem a Deus são considerados
bem-aventurados, ou seja, não porque desfrutem de evanescente e infantil
alegria, mas porque se encontram numa condição saudável. Há nas palavras um
contraste implícito entre o vigor de uma árvore plantada num sido bem regado e
a aparência decaída de uma que, embora viceje prazenteiramente por algum tempo,
no entanto logo murcha em decorrência da aridez do solo em que se acha
plantada. Com respeito aos ímpios, como veremos mais adiante [Salmo 37.35],
eles são às vezes como "os cedros do Líbano". Desfrutam de uma
prosperidade tão exuberante, tanto de riquezas quanto de honras, que nada
parece faltar-lhes para sua presente felicidade. Não obstante, quanto mais alto
se ergam e quanto mais expandam por todos os lados seus galhos, uma vez não possuindo
raízes bem fincadas no chão, nem ainda suficiente umidade da qual venha a
derivar seus nutrientes, toda a sua beleza se esvai e desaparece. Portanto, é
tão-somente pela bênção divina que alguém pode permanecer numa condição de
prosperidade. Os que explicam a figura dos fiéis produzindo seu fruto na
estação própria, significando que sabiamente discernem quando uma coisa deve
ser feita, até onde pode ser bem feita, em minha opinião revela mais sutileza
do que bom senso, impondo às palavras do profeta um sentido que ele jamais
pretendeu. Obviamente, sua intenção nada mais nada menos era que os filhos de
Deus vicejam constantemente, e são sempre regados com as secretas influências
da graça divina, de modo que tudo quando lhes suceda é proveitoso para sua
salvação. Enquanto que, em contrapartida, os ímpios são arrebatados pelas
repentinas tempestades ou consumidos pelo escaldante calor. E ao dizer: proãu\
seu fruto na estação própria} ele expressa o pleno sazonamento do fruto
produzido, ao passo que, embora os ímpios aparentem precoce fecundidade,
contudo nada produzem que conduza à perfeição.
Os
ímpios não são assim; são, porém, como a palha que o vento dispersa.(v.4)
O salmista bem poderia, com
propriedade, ter comparado os ímpios a uma árvore que rapidamente murcha, à
semelhança de Jeremias que os compara ao arbusto que cresce no deserto jjr
17.6]. Considerando, porém, que tal figura não era suficientemente forte, ele
os avilta ainda mais, empregando uma outra [figura] que os exibe por um prisma
que os toma ainda mais desprezíveis. E a razão é porque ele não mantém seus
olhos postos na condição de prosperidade da qual se vangloriam por um curto
tempo, mas sua mente pondera seriamente na
destruição que os aguarda e que, finalmente, os surpreenderá. Portanto, eis o
significado: embora os ímpios vivam no momento prosperamente, todavia vão
paulatinamente se transformando em palha; pois quando o Senhor os derribar, ele
os arrojará de um lado para o outro com sua fulminante ira. Além disso, com
essa forma de falar, o Espírito Santo nos ensina a contemplarmos com os olhos
da fé o que de outra forma nos pareceria incrível; pois ainda que o ímpio se
eleve e surja de forma sobranceira, à semelhança de uma árvore imponente, que
descansemos certos de que ele será com a palha ou o refugo, sabendo que no
devido tempo Deus o arrojará da alta posição em que se encontra, com o sopro de
sua boca.
Portanto,
os ímpios não prevalecerão no juí^o nem os pecadores, na congregação dos
justos. Porque Jehovah conhece o caminho dos justos; mas o caminho dos ímpios
perecerá. (5,6)
No quinto versículo, o profeta
ensina que uma vida feliz depende de uma sã consciência, e que, portanto, não é
de admirar que o ímpio de repente se veja sem aquela felicidade que julgara
possuir. E há implícita nas palavras uma espécie de concessão: o profeta
tacitamente reconhece que os ímpios se deleitam e desfrutam e triunfam durante o
reinado da desordem moral do mundo; justamente como os ladrões se regalam nas
florestas e esconderijos enquanto se vêem fora do alcance da justiça. Ele nos
assegura, porém, que as coisas nem sempre correrão bem em seu presente estado
de confusão, e que quando forem reduzidas ao seu real estado, tais pessoas
ímpias se verão inteiramente privadas de seus prazeres e perceberão que foram
enfatuadas imaginando ser felizes. E assim percebemos que o salmista apresenta
o ímpio como sendo um ser miserável, visto a felicidade ser uma bênção interior
procedente de uma sã consciência. Ele não nega que, antes que compareçam a
juízo, todas as coisas foram bem sucedidas com eles; mas nega que sejam de fato
felizes, a menos que tenham substancial e inabalável integridade de caráter
para se manterem; pois a genuína integridade dos justos se manifesta quando ela
finalmente é provada. E deveras verdade que o Senhor exerce juízo diariamente,
quando faz distinção ente os justos e os perversos; visto, porém, que isso só é
feito parcialmente nesta vida, devemos olhar mais alto se desejamos ver a
assembléia dos justos, da qual se faz menção aqui.
Mesmo neste mundo, a
prosperidade dos ímpios começa a escoar-se assim que Deus manifesta os emblemas
de seu juízo (porque, sendo despertos do sono, são constrangidos a
reconhecerem, queiram ou não, que não têm qualquer parte na assembléia dos
justos); visto, porém, que isso nem sempre se concretiza em relação a todos os
homens, no presente estado, devemos pacientemente esperar o dia da revelação
final, quando Cristo separará as ovelhas dos cabritos. Ao mesmo tempo, devemos
ter como verdade geral o fato de que os ímpios estão destinados à miséria; pois
suas próprias
consciências os condenam em
virtude de sua perversidade; e, assim que forem convocados a prestar contas de
sua vida, seu sono será interrompido, e então perceberão que estiveram
meramente sonhando quando acreditavam ser felizes, sem visualizar em seu
interior o real estado de seus corações.
Além do mais, as coisas, aqui,
parecem ser atiradas à mercê da sorte, e como não nos é fácil, no meio da
confusão prevalecente, reconhecer a ver do que o salmista havia dito, ele,
pois, apresenta, para nossa consideração, o grande princípio de que Deus é o
Juiz do mundo. Isso concedido, segue-se que não pode haver outra sorte para o
reto e o justo senão o bem-estar, enquanto que, em contrapartida, outra sorte
não está reservada ao ímpio senão a mais terrível destruição. De acordo com
toda a evidência externa, os servos de Deus não podem extrair beneficio algum
de sua retidão; mas, como é o oficio peculiar de Deus defende-los e tomar
providência em favor de sua segurança, eles devem viver felizes sob a proteção
divina. E de tal fato podemos também concluir que, como Deus é o inexorável
vingador contra os perversos, ainda que por algum tempo ele pareça não notar o
que o ímpio faz, finalmente o visitará com a destruição. Portanto, em vez de
admitirmo-nos ser enganados com sua imaginária felicidade, tenhamos sempre
diante de nossos olhos, em circunstâncias de estresses, a providência de Deus,
a quem pertence a prerrogativa de estabelecer os negócios do mundo e fazer com
que, do caos, surja a perfeita ordem.
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