26 julho, 2010
0 Concepções Errôneas quanto a Natureza da Igreja – João Calvino
Com seu dilema, não tão
prementemente nos arrocham que nos forcem a confessar, ou que a Igreja esteve
por algum tempo semimorta, ou que agora estejamos nós em conflito com a greja. A Igreja de Cristo certamente tem
estado viva, e viva continuará por quanto tempo Cristo reinar à destra do Pai,
por cuja mão é ela sustentada, por cuja proteção é guardada, por cujo poder ela
retém sua intangibilidade.
Pois ele cumprirá,
indubitavelmente, o que uma vez prometera, a saber, que haverá de estar com os
seus até a consumação do mundo [Mt 28.20]. No momento não sustentamos contra
ela nenhuma luta, uma vez que, em pleno consenso com todo o corpo dos fiéis,
cultuamos e adoramos ao Deus único e a Cristo, o Senhor [1Co 8.6], nos moldes
em que tem sido sempre adorado por todos os piedosos. Entretanto, eles não se
desviam pouco da verdade, quando não reconhecem nenhuma Igreja senão aquela que
descortinam pela visão natural e a tentam circunscrever aos limites a que, de
modo algum, foi ela confinada.
A controvérsia gira nestes
gonzos: primeiro, que eles contendem dizendo que a forma da Igreja é sempre
concreta e visível; segundo, que identificam a própria forma com a sé da igreja
romana e a ordem de seus prelados. Nós afirmamos, em contrário, não só que a
Igreja pode subsistir sem nenhuma expressão visível, nem que ela contém a forma
nesse esplendor externo que estultamente admiram, mas, em marca bem diferente,
a saber, na pregação pura da Palavra de Deus e na legítima administração dos
sacramentos.
Eles se exasperam quando nem
sempre podem apontar a Igreja com o dedo. Quão freqüentemente, porém, aconteceu
de ela deformar-se ante o povo judeu a tal ponto que não podia ser distinguida
por nenhuma aparência? Que forma pensamos haver ela refulgido, quando Elias
deplorava por ter ficado sozinho? [1Rs 19.14]. Quanto tempo, desde a vinda de
Cristo, ela ficou obscura e sem forma? Quantas vezes, desde essa época, ela foi
de tal modo oprimida por guerras, por revoltas, por heresias, que em parte
alguma fosse contemplada com esplendor? Se porventura tivessem vivido nesse
tempo, teriam crido existir então alguma Igreja? Elias, porém, ouviu que foram
conservados sete mil homens que não tinham dobrado os joelhos diante de Baal
[1Rs 19.18]. Tampouco nos deve pairar alguma dúvida de que Cristo sempre reinou
na terra, desde que subiu ao céu. Com efeito, se então os piedosos houvessem
requerido alguma forma perceptível aos olhos, porventura não teriam prontamente
cedido ao desânimo?
Aliás, já em seu século,
Hilário havia considerado ser um mal superlativo que, tomados de estulta
admiração pela dignidade episcopal, não se apercebiam que se ocultava por
debaixo dessa máscara mortífera e sinistra, porque assim fala contra Auxêncio:
“De uma coisa vos advirto: Guardai-vos do Anticristo! Pois é mal que de vós se
haja apoderado o amor às paredes, mal que venerais a Igreja de Deus em tetos e
edifícios, mal que sob essas coisas introduzis o nome de paz. Porventura é
passível de dúvida que nestes o Anticristo haverá de assentar-se? A mim mais
seguros são as montanhas, as florestas, os lagos, os cárceres e as furnas. Pois
nestes, profetiza o Profeta, ou habitam, ou são lançados.”
Entretanto, o que hoje o mundo
venera em seus bispos cornudos, senão que presume serem santos prelados da
religião aqueles a quem vê presidirem às cidades de maior renome? Fora,
portanto, com tão estulta admiração! Antes, pelo contrário, uma vez que só ele
sabe quem são os seus [2Tm 2.19], permitamos ao Senhor isto: às vezes ele até
mesmo priva a visão dos homens da percepção exterior de sua Igreja. Confesso que
isso é o que merece a impiedade dos homens; por que porfiamos nós em opornos à
justa vingança de Deus? Em moldes como esses, o Senhor puniu em tempos idos a
ingratidão dos homens. Ora, visto que não quiseram obedecer-lhe à verdade, e
sua luz extinguiram, quis ele que, tornando-se cegos em seu entendimento, não
só fossem enganados por falsidades absurdas, mas ainda imersos em trevas
profundas, de tal sorte que não se evidenciasse nenhuma expressão exterior da
verdadeira Igreja.
Contudo, em todo o tempo em que
ela foi extinta, ele preservou os seus, ainda que não só dispersos, mas até
mesmo submersos em meio aos erros e às trevas. Nem é de admirar, pois, que
soube preservá-los tanto na própria confusão de Babilônia, quanto na chama da
fornalha ardente. Entretanto, o fato de quererem julgar a forma da Igreja em
função de não sei que vã pompa, o quanto isso é perigoso, e para que a
exposição não se prolongue desmedidamente, o indicarei em poucas palavras, em
vez de tecer-lhe longa consideração.
O pontífice, insistem, que
ocupa a sé apostólica, e quantos foram por ele ungidos e consagrados
sacerdotes, uma vez que sejam assinalados por suas mitras e báculos,
representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja. Por isso eles não podem
errar. Por quê? Porque são pastores da Igreja e consagrados ao Senhor. E
porventura Arão e os demais guias de Israel não eram pastores? Contudo Arão e
seus filhos, já investidos sacerdotes, no entanto erraram quando forjaram o
bezerro [Ex 32.4]. Segundo este raciocínio, por que não teriam representado a
Igreja aqueles quatrocentos profetas que mentiam a Acabe? [1Rs 22.11, 12]. A
Igreja, porém, estava do lado de Micaías, por certo um homem sozinho e
desprezível, de cuja boca, entretanto, procedia a verdade.
Porventura os profetas não
levavam diante de si não só o nome, como também a forma da Igreja, quando à uma
se insurgiram contra Jeremias e, ameaçadores, se jactavam de que não era
possível que a lei perecesse ao sacerdote, o conselho ao sábio, a palavra ao
profeta? [Jr 18.18]. Jeremias é enviado sozinho contra toda essa horda de
profetas, para que da parte do Senhor denunciasse que acontecerá que a lei perecerá
ao sacerdote, o conselho ao sábio, a palavra ao profeta! [Jr 4.9].
Por acaso não refulgia tal
esplendor naquela assembléia que os sacerdotes, os escribas e os fariseus
reuniram a fim de captar pareceres acerca de como tirariam a vida a Cristo? [Mt
26.3, 4; Jo 11.47-53; 12.10]. Que se vão agora e se apeguem à máscara exterior,
e assim se façam cismáticos a Cristo e a todos os profetas de Deus; por outro
lado, que façam dos ministros de Satanás órgãos do Espírito Santo! Ora, se
estão falando a sério, respondam-me em boa fé: entre que agentes e lugares
pensam que a Igreja residia depois que, por decreto do Concílio de Basiléia, Eugênio
foi deposto e alijado do pontificado e Amadeu investido em seu lugar?
Ainda que se arrebentem, não
podem negar que, no que tange à exterioridade, esse Concílio foi legítimo, além
de tudo convocado não apenas por um pontífice, mas por dois. Eugênio foi ali
condenado de cisma, rebelião e contumácia, juntamente com todo o bando de
cardeais e bispos que haviam com ele maquinado a dissolução do Concílio.
Entretanto, mais tarde apoiado no favor dos príncipes, recuperou integralmente o
pontificado. Em fumaça se desfez essa eleição de Amadeu, solenemente consumada
que fora pela autoridade de um sínodo geral e sacrossanto, exceto que o
supracitado Amadeu foi aplacado em virtude de um chapéu cardinalício, como um cão
a ladrar se cala quando lhe é tirado naco de carne. Do grêmio desses hereges rebeldes
e contumazes procedeu tudo quanto em seguida tem havido de papas, cardeais, bispos,
abades, padres.
Neste ponto, impõe-se
agarrá-los e imobiliza-los. Pois, a qual das duas facções conferirão o nome de
Igreja? Porventura negarão que foi esse um Concílio Geral, de nada carecendo
quanto à majestade exterior, já que, em verdade, foi solenemente convocado por
duas bulas, consagrado mediante o legado da sé romana a presidi-lo, em todas as
coisas devidamente conformado às normas regulamentares, a conservar-se sempre
na mesma dignidade até o fim? Declararão Eugênio cismáticos com toda sua
coorte, pela qual foram todos consagrados?
Portanto, ou definam a forma da
Igreja em outros termos, ou, por mais numerosos que sejam, serão por nós tidos
como cismáticos quantos, cônscia e deliberadamente, foram ordenados por
hereges.
E se nunca antes se fizesse
evidente que a Igreja não se prende a pompas externas, eles próprios podem
dizer-nos que disso constitui prova abundante, visto que, sob esse pomposo nome
de Igreja, por tanto tempo orgulhosamente se apregoaram ao mundo, quando,
entretanto, não passavam de pestes mortíferas à Igreja. Não estou me referindo
a seus costumes e àqueles atos hediondos de que empanturra o viver de todos,
quando, como os fariseus, dizem que devem ser ouvidos, não imitados [Mt 23.3]. Se
devotares um pouco de teu lazer a ler estas nossas ponderações, sem sombra de
dúvida reconhecerás que a própria, sim, a própria doutrina, à base da qual
argúem que devem ser tidos como sendo a Igreja, não passa de mortífero
matadouro de almas, tocha incendiária, ruína e destruição da Igreja.
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