28 junho, 2010
0 Deus nosso Salvador – João Calvino
Portanto,
exorto, antes de tudo, que se usem súplicas, orações, intercessões, ações de
graças em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se
encontram em posição de destaque, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com
toda piedade e respeito. Isso é bom e aceitável aos olhos de Deus, nosso
Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade.(1Tm 2.1-4)
1. Portanto, exorto, antes de
tudo. Os exercícios religiosos que o apóstolo aqui ordena mantêm
e fortalecem em nós o culto sincero e o temor de Deus, bem como nutrem a
consciência íntegra de que falamos anteriormente. O termo, portanto, é então
perfeitamente apropriado, visto que essas exortações se deduzem naturalmente do
encargo que ele pusera sobre Timóteo.
Primeiramente, ele trata da
oração pública e de sua regulamentação, a saber: que ela deve ser feita não só
em favor dos crentes, mas em favor de todo o gênero humano. É possível que
alguém argumente: “Por que devemos preocupar-nos com o bem-estar dos
incrédulos, já que não mantêm nenhuma relação conosco? Não é suficiente que
nós, que somos irmãos, oremos uns pelos outros e encomendemos a Deus toda a Igreja?
Os estranhos não significam nada para nós”. Paulo se põe contra essa perversa
perspectiva, e diz aos efésios que incluíssem em suas orações todos os homens,
e não as restringissem somente ao corpo da Igreja.
Admito que não entendo
plenamente a diferença entre os três ou quatro tipos de oração de que Paulo faz
menção. É pueril a opinião expressa por Agostinho, a qual torce as palavras de
Paulo para adequarem-se ao uso cerimonial de sua própria época. O ponto de
vista mais simples é preferível, a saber: que súplicas são solicitações para
sermos libertados do mal; orações são solicitações por algo que nos seja
proveitoso; e intercessões são nossos lamentos postos diante de Deus em razão
das injúrias que temos suportado. Eu mesmo, contudo, não entro em distinções
sutis desse gênero; ao contrário, deduzo um tipo diferente de distinção.
Proseucai [Proseuche] é o termo grego geral para todo e qualquer tipo de
oração; e deh>seiv [deeseis] denota essas formas de oração nas quais se faz
alguma solicitação específica. Portanto, essas duas palavras se relacionam como
o gênero e a espécie. v´Enteu>xeiv [Enteuxeois] é o termo usual de Paulo
para as orações que oferecemos em favor uns dos outros, e o termo usado em
latim é intercessiones, intercessões. Platão, contudo, em seu segundo diálogo
intitulado, Albibíades, usa a palavra de forma diferenciada para denotar uma
petição definida, expressa por uma pessoa em seu próprio favor. Em cada
inscrição do livro, bem como em muitas passagens, ele mostra claramente que proseuch
[proseuche] é, como eu já disse, um termo geral.
Todavia, para não nos determos
desproporcionalmente por mais tempo numa questão que não é de grande
relevância, Paulo, em minha opinião, está simplesmente dizendo que sempre que
as orações públicas foram oferecidas, as petições e súplicas devem ser
formuladas em favor de todos os homens, mesmo daqueles que presentemente não
mantêm nenhum relacionamento conosco. O amontoado de termos não é supérfluo;
pois ao meu ver Paulo, intencionalmente, junta esses três termos com o mesmo
propósito, ou seja, com o fim de recomendar, com o maior empenho possível, e
pedir com a máxima veemência, que se façam orações intensas e constantes.
Sobre o significado de ações de
graças não há nada de obscuro, pois ele não só nos incita a orar a Deus pela
salvação dos incrédulos, mas também a render graças por sua prosperidade e
bem-estar. A portentosa benevolência que Deus nos demonstra dia a dia, ao fazer
“seu sol nascer sobre bons e maus”, é digna de todo o nosso louvor; e o amor
devido ao nosso próximo deve estender-se aos que dele são indignos.
2.
Em favor dos reis. Ele faz expressa menção dos reis e de outros
magistrados porque os cristãos têm muito mais razão de odiá-los do que todos os
demais. Todos os magistrados daquele tempo eram ajuramentados inimigos de
Cristo, de modo que se poderia concluir que eles não deviam orar em favor de
pessoas que viviam devotando toda a sua energia e riquezas em oposição ao reino
de Cristo, enquanto que, para os cristãos, a extensão desse reino, e de todas
as coisas, é a mais desejável. O apóstolo resolve essa dificuldade e
expressamente ordena que orações sejam oferecidas em favor deles. A depravação
humana não é razão para não se ter em alto apreço as instituições divinas no
mundo. Portanto, visto que Deus designou magistrados e príncipes para a
preservação do gênero humano, e por mais que fracassem na execução da
designação divina, não devemos, por tal motivo, cessar de ter prazer naquilo
que pertence a Deus e desejar que seja preservado. Eis a razão por que os
crentes, em qualquer país em que vivam, devem não só obedecer às leis e ao
comando dos magistrados, mas também, em suas orações, devem defender seu
bem-estar diante de Deus. Disse Jeremias aos israelitas: “Orai pela paz de
Babilônia, porque, em sua paz, tereis paz” [Jeremias 29:7). Eis o ensino
universal da Escritura: que aspiremos o estado contínuo e pacífico das
autoridades deste mundo, pois elas foram ordenadas por Deus.
Para que vivamos vida tranqüila
e mansa. Ele acrescenta mais uma persuasão, ao mostrar como isso será
proveitoso a nós próprios e ao enumerar as vantagens geradas por um governo bem
regulamentado. A primeira é uma vida tranqüila, porquanto os magistrados se
encontram bem armados com espada para a manutenção da paz. A menos que
restrinjam o atrevimento dos homens perversos, o mundo inteiro se encherá de
ladrões e assassinos. Portanto, a forma correta de conservar a paz consiste em
que a cada pessoa seja dado o que é propriamente seu, e que a violência dos
poderosos seja refreada. A segunda vantagem consiste na preservação da piedade,
ou seja, quando os magistrados se diligenciam em promover a religião, em manter
o culto divino e requerer reverência pelas coisas sacras. A terceira vantagem
consiste na preocupação pela seriedade pública: pois o benefício advindo dos
magistrados consiste em que impeçam os homens de se entregarem a impurezas
bestiais ou a vergonha devassidão, bem como a preservar a modéstia e a
moderação. Se esses três requisitos foram suprimidos, que gênero de vida será
deixado à sociedade humana? Portanto, se porventura nos preocupamos com a
tranqüilidade pública, com a piedade ou com a decência, lembremo-nos de que o
nosso dever é diligenciarmo-nos em favor daqueles por cuja instrumentalidade
obtemos tão relevantes benefícios.
Disso concluímos que os
fanáticos que lutam pela supressão dos magistrados são privados de toda
humanidade e promovem unicamente o barbarismo impiedoso. Que grande diferença
há entre Paulo que declara que, por amor à preservação da justiça e da
decência, bem como da promoção da religião, devemos orar em favor dos reis, e
aqueles que dizem que não só o poder real, mas também todo e qualquer governo,
são contrários à religião. O que Paulo afirma tem o Espírito Santo como Autor;
conseqüentemente, o conceito dos fanáticos não tem outro autor senão o diabo.
Se porventura suscitar-se a
pergunta se devemos ou não orar em favor dos reis de cujo governo não recebemos
tais benefícios, minha resposta é que devemos orar por eles, sim, para que, sob
as diretrizes do Espírito Santo, comecem a conceder-nos essas bênçãos, com as
quais até agora não foram capazes de prover-nos. Portanto, devemos não só orar
por aqueles que já são dignos, mas também pedir a Deus que converta os maus em
bons governantes. Devemos manter sempre este princípio: que os magistrados são
designados por Deus para a proteção da religião, da paz e da decência públicas,
precisamente como a terra foi ordenada para produzir o alimento. Por
conseguinte, quando oramos pelo pão de cada dia, pedimos a Deus que faça a
terra fértil, ministrando-lhe sua bênção, assim devemos considerar os
magistrados como meios ordinários que Deus, em Sua providência, ordenou para
conceder-nos as demais bênçãos. A isso deve-se acrescentar que, se somos privados
daquelas bênçãos que Paulo atribui como dever dos magistrados no-las fornecer,
a culpa é nossa. É a ira de Deus que faz com que os magistrados sejam inúteis,
da mesma forma que faz com que a terra seja estéril. Portanto, devemos orar
pela remoção dos castigos que nos sobrevêm em virtude de nossos pecados.
Em contrapartida, os
magistrados e todos quantos desempenham algum ofício na magistratura são aqui
lembrados de seu dever. Não basta que restrinjam a injustiça, dando a cada um o
que é devidamente seu, e mantenham a paz, se não são igualmente zelosos em
promover a religião e em regulamentar os costumes pelo uso de uma disciplina
construtiva. A exortação de Davi, para que [os magistrados] “beijem o Filho”
[Salmo 2:12, e a profecia de Isaías, para que sejam pais da Igreja, é de grande
relevância. Portanto, não terão motivo para se congratularem, caso negligenciem
sua assistência na manutenção do culto divino.
3.
Isso é bom e aceitável. Havendo demonstrado que o mandamento que
ele promulgara é excelente, agora apela para um argumento mais enérgico, a
saber: que é agradável a Deus. Pois quando sabemos que essa é a vontade,
cumpri-la é a melhor que todas as demais razões. Pelo termo, “bom”, ele tem em
mente o que é certo e lícito; e, visto que a vontade de Deus é a regra pela
qual devemos regulamentar todos os nossos deveres, ele prova que ela é justa,
porque é aceitável a Deus.
Esta passagem merece detida
atenção, pois dela podemos extrair o princípio geral de que a única norma
genuína para agir bem e com propriedade é acatar a e esperar na vontade de
Deus, e não empreender nada senão aquilo que ele aprova. E essa é também a
regra da oração piedosa, a saber: que tomemos a Deus por nosso Líder, de modo
que todas as nossas orações sejam regulamentadas por Sua vontade e comando. Se
essa regra não houvera sido suprimida, as orações dos papistas, hoje, não
seriam tão saturadas de corrupções. Pois, como poderão provar que detêm a
autoridade divina para se dedicarem à intercessão dos santos falecidos, ou eles
mesmos praticarem a intercessão em favor dos mortos? Em suma, em toda a sua
forma de orar, o que poderão apresentar que seja do agrado de Deus?
4. Daqui
se deduz uma confirmação do segundo argumento, o fato de que Deus deseja que
todos os homens sejam salvos. Pois, que seria mais razoável do que todas as
nossas orações se conformarem a este decreto divino? Concluindo, ele demonstra
que Deus tem no coração a salvação de todos os homens, porquanto Ele chama a
todos os homens para o conhecimento de Sua verdade. Este é um argumento que
parte de um efeito observado em direção à sua causa. Pois se “o evangelho é o
poder de Deus par a salvação de todo aquele que crê [Romanos 1:16], então é
justo que todos aqueles a quem o evangelho é proclamado sejam convidados a nutrir
a esperança da vida eterna. Em suma, visto que a vocação [do evangelho] é uma
prova concreta da eleição secreta, então Deus admite à posse da salvação
aqueles a quem Ele concedeu a bênção de participarem de Seu evangelho, já que o
evangelho nos revela a justiça de Deus que garante o ingresso na vida.
À luz desse fato, fica em
evidência a pueril ilusão daqueles que crêem que esta passagem contradiz a
predestinação. Argumentam: “Se Deus quer que todos os homens, sem distinção
alguma, sejam salvos, então não pode ser verdade que, mediante Seu eterno
conselho, alguns hajam sido predestinados para a salvação e outros, para a
perdição”. Poderia haver alguma base para tal argumento, se nesta passagem
Paulo estivesse preocupado com indivíduos; e mesmo que assim fosse, ainda
teríamos uma boa resposta. Porque, ainda que a vontade de Deus não deva ser
julgada à luz de Seus decretos secretos, quando Ele no-los revela por meio de
sinais externos, contudo não significa que ele não haja determinado
secretamente, em Seu íntimo, o que se propõe fazer com cada pessoa
individualmente.
Mas não acrescentarei a este
tema nada mais, visto o assunto não ser relevante ao presente contexto, pois a
intenção do apóstolo, aqui, é simplesmente dizer que nenhuma nação da terra e
nenhuma classe social são excluídas da salvação, visto que Deus quer oferecer o
evangelho a todos sem exceção. Visto que a pregação do evangelho traz vida, o
apóstolo corretamente conclui que Deus considera a todos os homens como sendo
igualmente dignos de participar da salvação. Ele, porém, está falando de
classes, e não de indivíduos; e sua única preocupação é incluir em seu número
príncipes e nações estrangeiros. Que a vontade de Deus é que eles também
participem do ensinamento do evangelho é por demais óbvio à luz das passagens
já citadas e de outras afins. Não é sem razão que se disse: “Pede-me, e eu te
darei as nações por herança, e as extremidades da terra por tua possessão”
[Salmo 2:8]. A intenção de Paulo era mostrar que devemos ter em consideração,
não que tipo de homens são os príncipes, mas, antes, o que Deus queria o que
fossem. Há um dever de amor que se preocupa com a salvação de todos aqueles a
quem Deus estende Seu chamamento e testifica acerca desse amor através de
orações piedosas.
É nessa mesma conexão que ele
chama Deus nosso Salvador, pois de qual fonte obtemos a salvação senão da
imerecida munificência divina? O mesmo Deus que já nos conduziu à Sua salvação
pode, ao mesmo tempo, estender a mesma graça também a eles. Aquele que já nos
atraiu a si pode uni-los também a nós. O apóstolo considera como um argumento
indiscutível o fato de Deus agir assim entre todas as classes e todas as
nações, porque isso foi predito pelos profetas.
Labels:
1 Timóteo,
Comentários Bíblicos,
João Calvino,
Oração,
Salvação,
Soberania
Assinar:
Postar comentários (Atom)
0 comentários: