30 junho, 2010
0 Depravação inerente e hereditária – João Calvino
Portanto, assim como por um só
homem entrou o pecado no mundo (Rm 5.12).. Ele
agora começa a ampliar a mesma doutrina através da comparação de opostos. Se o
propósito da vinda de Cristo era redimir-nos da calamidade em que Adão caiu, e
levou toda a sua progênie com ele na hecatombe, uma concepção mais clara do que
possuímos em Cristo só pode vir quando nos é mostrado o que perdemos em Adão.
Acomparação, contudo, não é
semelhante em todos os aspectos. Paulo, pois, faz uma correção, a qual
discutiremos em seu lugar ? apropriado. Realçaremos também alguma diferença que
possa ocorrer. A falta de continuidade da frase a torna um tanto obscura, visto
que a segunda cláusula da comparação, que equilibra a primeira, não é expressa.
Entretanto, esforçar-nos-emos por elucidá-las quando tratarmos da dita
passagem.
Entrou
o pecado no mundo. Notemos a ordem que ele segue aqui. Diz que o
pecado veio antes, e que a morte veio em seguida. Certos intérpretes defendem a
tese de que tal foi a nossa ruína como conseqüência do pecado de Adão, que
perecemos, não por alguma culpa propriamente nossa, mas simplesmente como se
ele tivesse pecado por nós. Paulo, contudo, expressamente afirma que o pecado
atingiu a todos os que sofrem o castigo devido ao pecado. Insiste de forma
ainda mais enfática quando logo a seguir aponta a razão por que toda a progênie
de Adão está sujeita ao domínio da morte. E porque todos nós pecamos. Pecar,
como o termo é usado aqui, é ser corrupto e viciado. A depravação natural que
trazemos do ventre de nossa mãe, embora não produza seus frutos imediatamente,
é, não obstante, pecado diante de Deus, e merece a sua punição. Isto é o que se
chama pecado original. Assim como Adão, em sua criação primitiva, recebeu tanto
para sua progênie quanto para si mesmo os dons da divina graça [=divinaegratiae dotes], também, ao
rebelar-se contra o Senhor, inerentemente corrompeu, viciou, depravou e
arruinou nossa natureza - tendo perdido a imagem de Deus [ =abdicatus aDeisimilitudine], e a única semente que poderia ter
produzido era aquela que traz a semelhança consigo mesmo [ —sui simile]. Portanto, todos nós pecamos, visto que nos achamos
saturados da corrupção natural, e por esta razão somos ímpios e perversos. A
tentativa dos pelagianos, nos dias de outrora, de esquivar-se das palavras de
Paulo, dizendo que não passou de uma frivolidade enganosa o ensino de que o
pecado provindo da imitação de Adão se estendeu a toda a raça humana, visto que
nesse caso Cristo teria sido apenas um exemplo e não a causa- da justiça. Além
do mais, a inferência é igualmente clara de que Paulo não está tratando, aqui,
com o pecado atual, pois se cada pessoa era responsável pela sua própria culpa,
por que Paulo compara Adão com Cristo? Segue-se, pois, que a alusão, aqui, é à nossa depravação inerente e
hereditária.

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29 junho, 2010
0 O Benefício dos Açoites de Deus – João Calvino
- Israel
é tragado: agora, estarão eles entre os gentios como um vaso no qual não há prazer. 8. Voratus est Israel, nunc erunt
inter gentes quasi vas in quo non est oblectatio (hoc est, vas rejectitium,
vel, contemptibile.)- Oséias 8.8
O profeta usa a mesma palavra
que antes, quando falou da farinha, e diz que não somente a provisão de Israel
será devorada, mas também o próprio povo; e ele reprocha os israelitas pelas próprias
misérias, para que eles finalmente reconhecessem que Deus lhes era adverso.
Pois o objetivo do Profeta era este — fazê-los sentir os próprios males, para
que, por fim, humilhassem-se e aprendessem a, suplicantemente, rogar por
perdão. Pois é grande sabedoria quando nos beneficiamos dos açoites de Deus a
ponto de nossos pecados virem para diante de nossos olhos.
Em conseqüência, ele diz:
Israel é devorado e está semelhante a um vaso rejeitado, precisamente entre os
gentios, quando, todavia, aquele povo sobrepujava o resto do mundo, visto que o
Senhor o elegera para si. Como era ele um povo peculiar, era superior a outras
nações; e, então, foi reservado para este fim, para que nada tivesse em comum
com os gentios. Mas ele diz agora que tal povo está disperso e, por toda parte,
desprezado e rejeitado. Isso não podia ter acontecido se Deus não houvesse
tirado sua proteção. Por essa razão, vemos que o Profeta tinha esta única coisa
em vista — fazer os israelitas sentirem que Deus estava irado com eles.

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28 junho, 2010
0 Deus nosso Salvador – João Calvino
Portanto,
exorto, antes de tudo, que se usem súplicas, orações, intercessões, ações de
graças em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se
encontram em posição de destaque, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com
toda piedade e respeito. Isso é bom e aceitável aos olhos de Deus, nosso
Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno
conhecimento da verdade.(1Tm 2.1-4)
1. Portanto, exorto, antes de
tudo. Os exercícios religiosos que o apóstolo aqui ordena mantêm
e fortalecem em nós o culto sincero e o temor de Deus, bem como nutrem a
consciência íntegra de que falamos anteriormente. O termo, portanto, é então
perfeitamente apropriado, visto que essas exortações se deduzem naturalmente do
encargo que ele pusera sobre Timóteo.
Primeiramente, ele trata da
oração pública e de sua regulamentação, a saber: que ela deve ser feita não só
em favor dos crentes, mas em favor de todo o gênero humano. É possível que
alguém argumente: “Por que devemos preocupar-nos com o bem-estar dos
incrédulos, já que não mantêm nenhuma relação conosco? Não é suficiente que
nós, que somos irmãos, oremos uns pelos outros e encomendemos a Deus toda a Igreja?
Os estranhos não significam nada para nós”. Paulo se põe contra essa perversa
perspectiva, e diz aos efésios que incluíssem em suas orações todos os homens,
e não as restringissem somente ao corpo da Igreja.
Admito que não entendo
plenamente a diferença entre os três ou quatro tipos de oração de que Paulo faz
menção. É pueril a opinião expressa por Agostinho, a qual torce as palavras de
Paulo para adequarem-se ao uso cerimonial de sua própria época. O ponto de
vista mais simples é preferível, a saber: que súplicas são solicitações para
sermos libertados do mal; orações são solicitações por algo que nos seja
proveitoso; e intercessões são nossos lamentos postos diante de Deus em razão
das injúrias que temos suportado. Eu mesmo, contudo, não entro em distinções
sutis desse gênero; ao contrário, deduzo um tipo diferente de distinção.
Proseucai [Proseuche] é o termo grego geral para todo e qualquer tipo de
oração; e deh>seiv [deeseis] denota essas formas de oração nas quais se faz
alguma solicitação específica. Portanto, essas duas palavras se relacionam como
o gênero e a espécie. v´Enteu>xeiv [Enteuxeois] é o termo usual de Paulo
para as orações que oferecemos em favor uns dos outros, e o termo usado em
latim é intercessiones, intercessões. Platão, contudo, em seu segundo diálogo
intitulado, Albibíades, usa a palavra de forma diferenciada para denotar uma
petição definida, expressa por uma pessoa em seu próprio favor. Em cada
inscrição do livro, bem como em muitas passagens, ele mostra claramente que proseuch
[proseuche] é, como eu já disse, um termo geral.
Todavia, para não nos determos
desproporcionalmente por mais tempo numa questão que não é de grande
relevância, Paulo, em minha opinião, está simplesmente dizendo que sempre que
as orações públicas foram oferecidas, as petições e súplicas devem ser
formuladas em favor de todos os homens, mesmo daqueles que presentemente não
mantêm nenhum relacionamento conosco. O amontoado de termos não é supérfluo;
pois ao meu ver Paulo, intencionalmente, junta esses três termos com o mesmo
propósito, ou seja, com o fim de recomendar, com o maior empenho possível, e
pedir com a máxima veemência, que se façam orações intensas e constantes.
Sobre o significado de ações de
graças não há nada de obscuro, pois ele não só nos incita a orar a Deus pela
salvação dos incrédulos, mas também a render graças por sua prosperidade e
bem-estar. A portentosa benevolência que Deus nos demonstra dia a dia, ao fazer
“seu sol nascer sobre bons e maus”, é digna de todo o nosso louvor; e o amor
devido ao nosso próximo deve estender-se aos que dele são indignos.
2.
Em favor dos reis. Ele faz expressa menção dos reis e de outros
magistrados porque os cristãos têm muito mais razão de odiá-los do que todos os
demais. Todos os magistrados daquele tempo eram ajuramentados inimigos de
Cristo, de modo que se poderia concluir que eles não deviam orar em favor de
pessoas que viviam devotando toda a sua energia e riquezas em oposição ao reino
de Cristo, enquanto que, para os cristãos, a extensão desse reino, e de todas
as coisas, é a mais desejável. O apóstolo resolve essa dificuldade e
expressamente ordena que orações sejam oferecidas em favor deles. A depravação
humana não é razão para não se ter em alto apreço as instituições divinas no
mundo. Portanto, visto que Deus designou magistrados e príncipes para a
preservação do gênero humano, e por mais que fracassem na execução da
designação divina, não devemos, por tal motivo, cessar de ter prazer naquilo
que pertence a Deus e desejar que seja preservado. Eis a razão por que os
crentes, em qualquer país em que vivam, devem não só obedecer às leis e ao
comando dos magistrados, mas também, em suas orações, devem defender seu
bem-estar diante de Deus. Disse Jeremias aos israelitas: “Orai pela paz de
Babilônia, porque, em sua paz, tereis paz” [Jeremias 29:7). Eis o ensino
universal da Escritura: que aspiremos o estado contínuo e pacífico das
autoridades deste mundo, pois elas foram ordenadas por Deus.
Para que vivamos vida tranqüila
e mansa. Ele acrescenta mais uma persuasão, ao mostrar como isso será
proveitoso a nós próprios e ao enumerar as vantagens geradas por um governo bem
regulamentado. A primeira é uma vida tranqüila, porquanto os magistrados se
encontram bem armados com espada para a manutenção da paz. A menos que
restrinjam o atrevimento dos homens perversos, o mundo inteiro se encherá de
ladrões e assassinos. Portanto, a forma correta de conservar a paz consiste em
que a cada pessoa seja dado o que é propriamente seu, e que a violência dos
poderosos seja refreada. A segunda vantagem consiste na preservação da piedade,
ou seja, quando os magistrados se diligenciam em promover a religião, em manter
o culto divino e requerer reverência pelas coisas sacras. A terceira vantagem
consiste na preocupação pela seriedade pública: pois o benefício advindo dos
magistrados consiste em que impeçam os homens de se entregarem a impurezas
bestiais ou a vergonha devassidão, bem como a preservar a modéstia e a
moderação. Se esses três requisitos foram suprimidos, que gênero de vida será
deixado à sociedade humana? Portanto, se porventura nos preocupamos com a
tranqüilidade pública, com a piedade ou com a decência, lembremo-nos de que o
nosso dever é diligenciarmo-nos em favor daqueles por cuja instrumentalidade
obtemos tão relevantes benefícios.
Disso concluímos que os
fanáticos que lutam pela supressão dos magistrados são privados de toda
humanidade e promovem unicamente o barbarismo impiedoso. Que grande diferença
há entre Paulo que declara que, por amor à preservação da justiça e da
decência, bem como da promoção da religião, devemos orar em favor dos reis, e
aqueles que dizem que não só o poder real, mas também todo e qualquer governo,
são contrários à religião. O que Paulo afirma tem o Espírito Santo como Autor;
conseqüentemente, o conceito dos fanáticos não tem outro autor senão o diabo.
Se porventura suscitar-se a
pergunta se devemos ou não orar em favor dos reis de cujo governo não recebemos
tais benefícios, minha resposta é que devemos orar por eles, sim, para que, sob
as diretrizes do Espírito Santo, comecem a conceder-nos essas bênçãos, com as
quais até agora não foram capazes de prover-nos. Portanto, devemos não só orar
por aqueles que já são dignos, mas também pedir a Deus que converta os maus em
bons governantes. Devemos manter sempre este princípio: que os magistrados são
designados por Deus para a proteção da religião, da paz e da decência públicas,
precisamente como a terra foi ordenada para produzir o alimento. Por
conseguinte, quando oramos pelo pão de cada dia, pedimos a Deus que faça a
terra fértil, ministrando-lhe sua bênção, assim devemos considerar os
magistrados como meios ordinários que Deus, em Sua providência, ordenou para
conceder-nos as demais bênçãos. A isso deve-se acrescentar que, se somos privados
daquelas bênçãos que Paulo atribui como dever dos magistrados no-las fornecer,
a culpa é nossa. É a ira de Deus que faz com que os magistrados sejam inúteis,
da mesma forma que faz com que a terra seja estéril. Portanto, devemos orar
pela remoção dos castigos que nos sobrevêm em virtude de nossos pecados.
Em contrapartida, os
magistrados e todos quantos desempenham algum ofício na magistratura são aqui
lembrados de seu dever. Não basta que restrinjam a injustiça, dando a cada um o
que é devidamente seu, e mantenham a paz, se não são igualmente zelosos em
promover a religião e em regulamentar os costumes pelo uso de uma disciplina
construtiva. A exortação de Davi, para que [os magistrados] “beijem o Filho”
[Salmo 2:12, e a profecia de Isaías, para que sejam pais da Igreja, é de grande
relevância. Portanto, não terão motivo para se congratularem, caso negligenciem
sua assistência na manutenção do culto divino.
3.
Isso é bom e aceitável. Havendo demonstrado que o mandamento que
ele promulgara é excelente, agora apela para um argumento mais enérgico, a
saber: que é agradável a Deus. Pois quando sabemos que essa é a vontade,
cumpri-la é a melhor que todas as demais razões. Pelo termo, “bom”, ele tem em
mente o que é certo e lícito; e, visto que a vontade de Deus é a regra pela
qual devemos regulamentar todos os nossos deveres, ele prova que ela é justa,
porque é aceitável a Deus.
Esta passagem merece detida
atenção, pois dela podemos extrair o princípio geral de que a única norma
genuína para agir bem e com propriedade é acatar a e esperar na vontade de
Deus, e não empreender nada senão aquilo que ele aprova. E essa é também a
regra da oração piedosa, a saber: que tomemos a Deus por nosso Líder, de modo
que todas as nossas orações sejam regulamentadas por Sua vontade e comando. Se
essa regra não houvera sido suprimida, as orações dos papistas, hoje, não
seriam tão saturadas de corrupções. Pois, como poderão provar que detêm a
autoridade divina para se dedicarem à intercessão dos santos falecidos, ou eles
mesmos praticarem a intercessão em favor dos mortos? Em suma, em toda a sua
forma de orar, o que poderão apresentar que seja do agrado de Deus?
4. Daqui
se deduz uma confirmação do segundo argumento, o fato de que Deus deseja que
todos os homens sejam salvos. Pois, que seria mais razoável do que todas as
nossas orações se conformarem a este decreto divino? Concluindo, ele demonstra
que Deus tem no coração a salvação de todos os homens, porquanto Ele chama a
todos os homens para o conhecimento de Sua verdade. Este é um argumento que
parte de um efeito observado em direção à sua causa. Pois se “o evangelho é o
poder de Deus par a salvação de todo aquele que crê [Romanos 1:16], então é
justo que todos aqueles a quem o evangelho é proclamado sejam convidados a nutrir
a esperança da vida eterna. Em suma, visto que a vocação [do evangelho] é uma
prova concreta da eleição secreta, então Deus admite à posse da salvação
aqueles a quem Ele concedeu a bênção de participarem de Seu evangelho, já que o
evangelho nos revela a justiça de Deus que garante o ingresso na vida.
À luz desse fato, fica em
evidência a pueril ilusão daqueles que crêem que esta passagem contradiz a
predestinação. Argumentam: “Se Deus quer que todos os homens, sem distinção
alguma, sejam salvos, então não pode ser verdade que, mediante Seu eterno
conselho, alguns hajam sido predestinados para a salvação e outros, para a
perdição”. Poderia haver alguma base para tal argumento, se nesta passagem
Paulo estivesse preocupado com indivíduos; e mesmo que assim fosse, ainda
teríamos uma boa resposta. Porque, ainda que a vontade de Deus não deva ser
julgada à luz de Seus decretos secretos, quando Ele no-los revela por meio de
sinais externos, contudo não significa que ele não haja determinado
secretamente, em Seu íntimo, o que se propõe fazer com cada pessoa
individualmente.
Mas não acrescentarei a este
tema nada mais, visto o assunto não ser relevante ao presente contexto, pois a
intenção do apóstolo, aqui, é simplesmente dizer que nenhuma nação da terra e
nenhuma classe social são excluídas da salvação, visto que Deus quer oferecer o
evangelho a todos sem exceção. Visto que a pregação do evangelho traz vida, o
apóstolo corretamente conclui que Deus considera a todos os homens como sendo
igualmente dignos de participar da salvação. Ele, porém, está falando de
classes, e não de indivíduos; e sua única preocupação é incluir em seu número
príncipes e nações estrangeiros. Que a vontade de Deus é que eles também
participem do ensinamento do evangelho é por demais óbvio à luz das passagens
já citadas e de outras afins. Não é sem razão que se disse: “Pede-me, e eu te
darei as nações por herança, e as extremidades da terra por tua possessão”
[Salmo 2:8]. A intenção de Paulo era mostrar que devemos ter em consideração,
não que tipo de homens são os príncipes, mas, antes, o que Deus queria o que
fossem. Há um dever de amor que se preocupa com a salvação de todos aqueles a
quem Deus estende Seu chamamento e testifica acerca desse amor através de
orações piedosas.
É nessa mesma conexão que ele
chama Deus nosso Salvador, pois de qual fonte obtemos a salvação senão da
imerecida munificência divina? O mesmo Deus que já nos conduziu à Sua salvação
pode, ao mesmo tempo, estender a mesma graça também a eles. Aquele que já nos
atraiu a si pode uni-los também a nós. O apóstolo considera como um argumento
indiscutível o fato de Deus agir assim entre todas as classes e todas as
nações, porque isso foi predito pelos profetas.

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26 junho, 2010
0 A Verdadeira Natureza da Igreja – João Calvino
CONCEPÇÕES ERRÔNEAS QUANTO À NATUREZA
DA IGREJA
Com
seu dilema, não tão prementemente nos arrocham que nos forcem a confessar, ou
que a Igreja esteve por algum tempo semimorta, ou que agora estejamos nós em
conflito com a Igreja. A Igreja de Cristo certamente tem estado viva, e viva continuará
por quanto tempo Cristo reinar à destra do Pai, por cuja mão é ela sustentada, por
cuja proteção é guardada, por cujo poder ela retém sua intangibilidade. Pois
ele cumprirá, indubitavelmente, o que uma vez prometera, a saber, que haverá de
estar com os seus até a consumação do mundo [Mt 28.20]. No momento não sustentamos
contra ela nenhuma luta, uma vez que, em pleno consenso com todo o corpo dos
fiéis, cultuamos e adoramos ao Deus único e a Cristo, o Senhor [1Co 8.6], nos
moldes em que tem sido sempre adorado por todos os piedosos. Entretanto, eles não
se desviam pouco da verdade, quando não reconhecem nenhuma Igreja senão aquela
que descortinam pela visão natural e a tentam circunscrever aos limites a que,
de modo algum, foi ela confinada.
A
controvérsia gira nestes gonzos: primeiro, que eles contendem dizendo que a forma
da Igreja é sempre concreta e visível; segundo, que identificam a própria forma
com a sé da igreja romana e a ordem de seus prelados. Nós afirmamos, em contrário,
não só que a Igreja pode subsistir sem nenhuma expressão visível, nem que ela
contém a forma nesse esplendor externo que estultamente admiram, mas, em marca
bem diferente, a saber, na pregação pura da Palavra de Deus e na legítima administração
dos sacramentos.
Eles
se exasperam quando nem sempre podem apontar a Igreja com o dedo. Quão
freqüentemente, porém, aconteceu de ela deformar-se ante o povo judeu a tal ponto
que não podia ser distinguida por nenhuma aparência? Que forma pensamos haver
ela refulgido, quando Elias deplorava por ter ficado sozinho? [1Rs 19.14]. Quanto
tempo, desde a vinda de Cristo, ela ficou obscura e sem forma? Quantas vezes,
desde essa época, ela foi de tal modo oprimida por guerras, por revoltas, por heresias,
que em parte alguma fosse contemplada com esplendor? Se porventura tivessem
vivido nesse tempo, teriam crido existir então alguma Igreja? Elias, porém,
ouviu que foram conservados sete mil homens que não tinham dobrado os joelhos
diante de Baal [1Rs 19.18]. Tampouco nos deve pairar alguma dúvida de que
Cristo sempre reinou na terra, desde que subiu ao céu. Com efeito, se então os piedosos
houvessem requerido alguma forma perceptível aos olhos, porventura não teriam
prontamente cedido ao desânimo?
Aliás,
já em seu século, Hilário havia considerado ser um mal superlativo que, tomados
de estulta admiração pela dignidade episcopal, não se apercebiam que se ocultava
por debaixo dessa máscara mortífera e sinistra, porque assim fala contra Auxêncio:
“De uma coisa vos advirto: Guardai-vos do Anticristo! Pois é mal que de vós se
haja apoderado o amor às paredes, mal que venerais a Igreja de Deus em tetos e
edifícios, mal que sob essas coisas introduzis o nome de paz. Porventura é
passível de dúvida que nestes o Anticristo haverá de assentar-se? A mim mais
seguros são as montanhas, as florestas, os lagos, os cárceres e as furnas. Pois
nestes, profetiza o Profeta, ou habitam, ou são lançados.”
Entretanto,
o que hoje o mundo venera em seus bispos cornudos, senão que presume serem
santos prelados da religião aqueles a quem vê presidirem às cidades de maior
renome? Fora, portanto, com tão estulta admiração! Antes, pelo contrário, uma
vez que só ele sabe quem são os seus [2Tm 2.19], permitamos ao Senhor isto: às
vezes ele até mesmo priva a visão dos homens da percepção exterior de sua
Igreja. Confesso que isso é o que merece a impiedade dos homens; por que
porfiamos nós em opornos à justa vingança de Deus? Em moldes como esses, o
Senhor puniu em tempos idos a ingratidão dos homens. Ora, visto que não
quiseram obedecer-lhe à verdade, e sua luz extinguiram, quis ele que,
tornando-se cegos em seu entendimento, não só fossem enganados por falsidades
absurdas, mas ainda imersos em trevas profundas, de tal sorte que não se
evidenciasse nenhuma expressão exterior da verdadeira Igreja. Contudo, em todo
o tempo em que ela foi extinta, ele preservou os seus, ainda que não só
dispersos, mas até mesmo submersos em meio aos erros e às trevas. Nem é de
admirar, pois, que soube preservá-los tanto na própria confusão de Babilônia, quanto
na chama da fornalha ardente.
Entretanto,
o fato de quererem julgar a forma da Igreja em função de não sei que vã pompa,
o quanto isso é perigoso, e para que a exposição não se prolongue
desmedidamente, o indicarei em poucas palavras, em vez de tecer-lhe longa
consideração.
O
pontífice, insistem, que ocupa a sé apostólica, e quantos foram por ele ungidos
e consagrados sacerdotes, uma vez que sejam assinalados por suas mitras e báculos,
representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja. Por isso eles não podem
errar. Por quê? Porque são pastores da Igreja e consagrados ao Senhor.
E
porventura Arão e os demais guias de Israel não eram pastores? Contudo Arão e
seus filhos, já investidos sacerdotes, no entanto erraram quando forjaram o
bezerro [Ex 32.4]. Segundo este raciocínio, por que não teriam representado a
Igreja aqueles quatrocentos profetas que mentiam a Acabe? [1Rs 22.11, 12]. A
Igreja, porém, estava do lado de Micaías, por certo um homem sozinho e
desprezível, de cuja boca, entretanto, procedia a verdade.
Porventura
os profetas não levavam diante de si não só o nome, como também a forma da
Igreja, quando à uma se insurgiram contra Jeremias e, ameaçadores, se jactavam
de que não era possível que a lei perecesse ao sacerdote, o conselho ao sábio,
a palavra ao profeta? [Jr 18.18]. Jeremias é enviado sozinho contra toda essa horda
de profetas, para que da parte do Senhor denunciasse que acontecerá que a lei perecerá
ao sacerdote, o conselho ao sábio, a palavra ao profeta! [Jr 4.9].
Por
acaso não refulgia tal esplendor naquela assembléia que os sacerdotes, os escribas
e os fariseus reuniram a fim de captar pareceres acerca de como tirariam a vida
a Cristo? [Mt 26.3, 4; Jo 11.47-53; 12.10]. Que se vão agora e se apeguem à máscara
exterior, e assim se façam cismáticos a Cristo e a todos os profetas de Deus;
por outro lado, que façam dos ministros de Satanás órgãos do Espírito Santo! Ora,
se estão falando a sério, respondam-me em boa fé: entre que agentes e lugares
pensam que a Igreja residia depois que, por decreto do Concílio de Basiléia, Eugênio
foi deposto e alijado do pontificado e Amadeu investido em seu lugar?
Ainda
que se arrebentem, não podem negar que, no que tange à exterioridade, esse Concílio
foi legítimo, além de tudo convocado não apenas por um pontífice, mas por dois.
Eugênio foi ali condenado de cisma, rebelião e contumácia, juntamente com todo
o bando de cardeais e bispos que haviam com ele maquinado a dissolução do
Concílio. Entretanto, mais tarde apoiado no favor dos príncipes, recuperou
integralmente o pontificado. Em fumaça se desfez essa eleição de Amadeu,
solenemente consumada que fora pela autoridade de um sínodo geral e
sacrossanto, exceto que o supracitado Amadeu foi aplacado em virtude de um
chapéu cardinalício, como um cão a ladrar se cala quando lhe é tirado naco de
carne. Do grêmio desses hereges rebeldes e contumazes procedeu tudo quanto em
seguida tem havido de papas, cardeais, bispos, abades, padres.
Neste
ponto, impõe-se agarrá-los e imobiliza-los. Pois, a qual das duas facções conferirão
o nome de Igreja? Porventura negarão que foi esse um Concílio Geral, de nada
carecendo quanto à majestade exterior, já que, em verdade, foi solenemente convocado
por duas bulas, consagrado mediante o legado da sé romana a presidi-lo, em
todas as coisas devidamente conformado às normas regulamentares, a conservar-se
sempre na mesma dignidade até o fim? Declararão Eugênio cismáticos com toda sua
coorte, pela qual foram todos consagrados?
Portanto,
ou definam a forma da Igreja em outros termos, ou, por mais numerosos que
sejam, serão por nós tidos como cismáticos quantos, cônscia e deliberadamente, foram
ordenados por hereges.
E
se nunca antes se fizesse evidente que a Igreja não se prende a pompas
externas, eles próprios podem dizer-nos que disso constitui prova abundante,
visto que, sob esse pomposo nome de Igreja, por tanto tempo orgulhosamente se
apregoaram ao mundo, quando, entretanto, não passavam de pestes mortíferas à
Igreja. Não estou me referindo a seus costumes e àqueles atos hediondos de que
empanturra o viver de todos, quando, como os fariseus, dizem que devem ser
ouvidos, não imitados [Mt 23.3].
Se
devotares um pouco de teu lazer a ler estas nossas ponderações, sem sombra de
dúvida reconhecerás que a própria, sim, a própria doutrina, à base da qual
argúem que devem ser tidos como sendo a Igreja, não passa de mortífero
matadouro de almas, tocha incendiária, ruína e destruição da Igreja.

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João Calvino
25 junho, 2010
0 Morte Amaldiçoada, porém Bendita - João Calvino
A própria forma da morte de Cristo não carece de grande mistério. A cruz era
maldita não apenas na opinião humana, mas também por decreto da lei divina [Dt
21.23]. Logo, enquanto é nela alçado, Cristo se faz sujeito à maldição. E se
impôs agir assim para que, enquanto ela é transferida para ele, eximidos
fôssemos de toda maldição, a qual, em
conseqüência de nossas iniqüidades, nos estava reservada, ou, antes, pendia
sobre nós. Isto fora prefigurado até mesmo na lei. Pois as vítimas oferecidas
pelos pecados e no Antigo Testamento eram expiatórias, as chamavam aschamot, vocábulo com que, com
propriedade, se designa o próprio pecado. Com esta aplicação do termo, o
Espírito quis indicar que elas equivaliam a [katharmát – sacrifícios ou ritos
de purificação], que tomariam sobre si e susteriam a maldição devida às
transgressões. O que, porém, fora representado figurativamente nos sacrifícios mosaicos,
isso se exibe em Cristo, atualizado no arquétipo. Portanto, para que levasse a
efeito a justa expiação, ofereceu ele a própria vida como um ascham, isto é, um sacrifício
expiatório do pecado, como o diz o Profeta [Is 53.10], sobre o qual lançada, de
certa maneira, a mancha e a pena, para que deixe de ser-nos ele imputado.
Mais
explicitamente, isto mesmo testifica o Apóstolo, quando ensina que “Aquele que
não conhecera pecado, foi pelo Pai feito pecado por nós, para que nele fôssemos
feitos justiça de Deus” [2Co 5.21]. Ora, o Filho de Deus, absolutamente limpo
de toda mácula, revestiu-se, entretanto, do opróbrio e da ignomínia de nossas
iniqüidades, e por seu turno nos cobriu de sua pureza. O mesmo parece ter Paulo
contemplado quando, em referência ao pecado, ensina ter sido o mesmo condenado
em sua carne [Rm 8.3]. Pois, de fato, o Pai anulou o poder do pecado, quando a
maldição foi transferida para a carne de Cristo. Indica-se, portanto, com esta
afirmação, que em sua morte Cristo foi imolado ao Pai como vítima expiatória,
para que, efetuada propiciação por seu sacrifício, não mais nos apavoremos com
a ira de Deus.
Agora está claro
o que significa essa afirmação do Profeta: “As iniqüidades de todos nós foram
postas sobre ele” [Is 53.6], isto é, Aquele que haveria de expungir a sordidez
dessas iniqüidades foi das mesmas coberto mediante imputação transferida.
Símbolo deste
fato, atesta-o o Apóstolo, foi a cruz, na qual Cristo foi pregado. “Cristo”,
diz ele, “nos redimiu da maldição da lei, conquanto se fez maldição por nós.
Pois foi escrito: Maldito é todo aquele que pende em um madeiro, para que a bênção
de Abraão em Cristo alcançasse os povos”[Gl 3.13, 14; Dt 21.23]. O mesmo Pedro
visualizou quando ensina que “no madeiro Cristo levou nossos pecados” [1Pe 2.24],
visto que do próprio símbolo da maldição compreendemos mais claramente que foi
posto sobre ele o fardo de que havíamos sido oprimidos.
Nem se deve,
contudo, entender que Cristo tenha arrostado com esta maldição de modo tal que
ele próprio tenha sido dela avassalado. Pelo contrário, em arrostando-a, antes
abateu, quebrantou, destroçou-lhe todo o poder. Conseqüentemente, a fé apreende
na condenação de Cristo uma absolvição; em sua maldição, uma bênção. Pelo que,
não sem causa, magnificentemente proclama Paulo o triunfo que Cristo alcançou
para si na cruz, como se esta, que era plena de ignomínia, fosse convertida em
carro triunfal. Pois ele diz que foi “pregada na cruz a nota de dívida que nos
era desfavorável, e os principados foram totalmente desbaratados, e, assim
despojados, foram exibidos em público” [Cl 2.14, 15]. Tampouco isso surpreende,
pois, como o atesta outro Apóstolo, “pelo Espírito Eterno Cristo se ofereceu a
si mesmo” [Hb 9.14], donde procede essa transmutação de natureza das coisas. Mas,
para que estas coisas finquem firme raiz em nosso coração, e no íntimo se nos
arraiguem, venham-nos sempre à mente seu sacrifício e ablução. Pois, nem poderíamos
confiar com certeza que Cristo nos é redenção [1Co 1.30] resgate [1Tm 2.6] e
propiciação [Rm 3.25]; a menos que
viesse a ser-nos a vítima sacrificial. E por isso tantas vezes se faz menção de
sangue onde a Escritura expõe o modo da redenção. Bem que, entretanto, o sangue
de Cristo derramado valeu não apenas para satisfação, mas também serviu de
lavagem para purgar-nos as imundícias.

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23 junho, 2010
0 A Lei evidencia nossa Deplorável Condição de Pecado – João Calvino -
Para que toda a matéria melhor se ponha à mostra,
coletemos, em forma sucinta, a função e uso da lei a que chamam Lei Moral. Ora,
até onde a entendo, ela consiste nestas três partes. A primeira é: enquanto
manifesta a justiça de Deus, isto é, a justiça que é aceita por Deus, a cada um
de nós de sua própria injustiça adverte, informa, convence e, finalmente,
condena. Pois, assim se faz necessário que o homem, cego e embriagado de amor
próprio, seja a um tempo impelido ao conhecimento e à confissão, seja de sua
fraqueza, seja de sua impureza. Pois, a não ser que sua fatuidade seja
claramente evidenciada, infla-se o homem de insana confiança de suas forças,
não pode jamais ser levado a sentir sua debilidade sempre que as mede pela
medida de seu alvitre. Contudo, tão logo começa a compará-las à dificuldade de
observar a lei, aí tem ele o que arrefeça sua altivez. Ora, por mais exaltada opinião
ele presuma acerca dessas suas força, entretanto logo as sente a palpitar ofegante
sob tão grande peso, então vacila e cambaleia, por fim até cai por terra e desfalece.
E assim, ensinado pelo magistério da lei, o homem se despe daquela arrogância que
antes o cegava.
De modo semelhante, ele precisa ser curado de outra
enfermidade, a saber, do orgulho, do qual se diz padecer. Por quanto tempo se
lhe permite firmar em seu próprio julgamento, fomenta a hipocrisia em lugar da
justiça, contente com a qual se levanta contra a graça de Deus, não sei com que
engendradas justiças. Entretanto, depois que é obrigado a pesar sua vida na
balança da lei, posta de parte a presunção dessa justiça imaginária, percebe
estar distanciado da santidade por imenso espaço; pelo contrário, que superabunda
de infinitos vícios dos quais até aqui parecia livre. Pois em tão profundos e
sinuosos recessos se escondem os males da cobiça, que enganam facilmente a
visão do homem. Nem sem causa diz o Apóstolo que teria ignorado a cobiça, se a
lei não dissera: “Não cobiçarás” [Rm 7.7]; porquanto, a não ser que a cobiça de
seu covil seja posta a descoberto mediante a lei, ela destrói o mísero homem
tão dissimuladamente, sem que possa ele sentir esse golpe mortal.
A LEI EVIDENCIA NOSSA INILUDÍVEL
CONDIÇÃO DE CULPA
Desta sorte, a lei é como que um espelho no qual
contemplamos nossa incapacidade, então resultante desta a iniqüidade, por fim a
maldição proveniente de ambas, exatamente como o espelho nos mostra as manchas
de nosso rosto. Pois aquele a quem falta a capacidade para seguir a justiça,
este está inexoravelmente chafurdado em um lamaçal de pecados. Ao pecado se
segue imediatamente a maldição. Portanto, quanto mais a lei nos convence de que
somos homens que têm cometido transgressão, tanto mais nos mostra que somos
dignos de pena e castigo.
A isto é pertinente o dito do Apóstolo, de que o
conhecimento do pecado é mediante a lei [Rm 3.20]. Pois ele aí está apenas a
assinalar-lhe a primeira função, que é experimentada nos pecadores ainda não
regenerados. A esta passagem são anexas estas: “Sobreveio a lei para que o
pecado abundasse” [Rm 5.20]; e por isso “é a dispensação da morte” [2Co 3.7],
que “produz a ira” [Rm 4.15] e mata.
Ora, quanto mais
claramente é a consciência espicaçada pelo conhecimento do pecado, com muito
mais firmeza cresce a iniqüidade, pois juntamente com a transgressão da lei
acresce, então, a contumácia contra o Legislador. Resta-lhe, portanto, que
acenda a ira de Deus para a ruína do pecador, porquanto de si a lei nada pode
senão acusar, condenar e perder. E, como escreve Agostinho: “Se o Espírito da
Graça está ausente, a lei não serve para outra coisa senão para acusar-nos e
condenar-nos à morte.”
Quando, porém, se diz isso, não se afeta a lei de
ignomínia, na verdade nem mesmo derroga-se-lhe algo da excelência. Com efeito,
se toda nossa vontade fosse conformada e ajustada à obediência, evidentemente
seu conhecimento seria suficiente para a salvação. Quando, porém, nossa
natureza carnal e corrupta contende hostilmente com a lei espiritual de Deus,
nem se deixa corrigir por sua disciplina, segue-se que a lei, que fora dada
para a salvação, se encontrasse ouvintes idôneos, se converteria em ocasião de
pecado e de morte. Portanto, uma vez que somos todos comprovadamente
transgressores, quanto mais claramente revela ela a justiça de Deus, tanto mais
desvenda, em contrário, nossa iniqüidade; quanto mais explicitamente confirma o
galardão da vida e da salvação como dependente da justiça, tanto mais confirma
a perdição dos iníquos.
Portanto, estas ponderações longe estão de ser injuriosas
à lei; ao contrário, são valiosas para uma recomendação mais excelente da
beneficência divina. Ora, daí se evidencia cabalmente que por nossa corrupção e
perversidade somos impedidos de fruir da bem-aventurança de vida revelada
mediante a lei. Donde se torna mais dulçorosa a graça de Deus que nos socorre
sem o subsídio da lei e mais aprazível sua misericórdia que no-la confere,
mediante a qual aprendemos que ele jamais se cansa de continuamente
conceder-nos benefícios e cumular-nos de novas dádivas.

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22 junho, 2010
0 Sola Scriptura - João Calvino
Para
que Alguém Possa Chegar a Deus, O Criador, É Necessário Que Tenha A Escritura
Por Guia e Mestra.
O Verdadeiro Conhecimento de
Deus está na Bíblia.
Portanto, se bem que o fulgor
que se projeta aos olhos de todos, no céu e na terra, retire totalmente toda
base para a ingratidão dos homens - e ainda que Deus, para envolver o gênero
humano na mesma culpa, mostre a todos esboçada nas criaturas, sua Divina
Majestade -, é necessário, contudo, além disso, acrescentar outro recurso
melhor, que nos dirija retamente ao próprio Criador do universo. Por isso, não
foi em vão que Deus acrescentou a luz de Sua Palavra para fazer-Se conhecido
para a salvação do homem. E considerou dignos deste privilégio a todos aqueles
aos quais quis trazer, para perto de Si, mais aproximada e intimamente.
Ora, porque Deus via a mente de
todos ser arrastada, de um lado para outro, por constante e imutável agitação -
depois de escolher os judeus para Si, como povo especial -, cercou-os por todos
os lados, para que não se extraviassem com os demais povos. E não é em vão que
ele nos mantém, por meio do mesmo remédio, no puro conhecimento de Si próprio,
porque, de outra forma, se desfariam bem rapidamente até mesmo os que parecem
mais firmes do que os outros. É exatamente como acontece com pessoas idosas ou
enfermas dos olhos, e a todos quantos sofre de visão embaraçada: se pusermos
diante delas até mesmo um volume vistoso, ainda que reconheçam estar ali algo
escrito, mal poderão, contudo, ajuntar duas palavras. Ajudadas, porém, com o
auxílio de óculos, essas pessoas começarão a ler de maneira eficiente. Assim a
Escritura, reunindo na nossa mente, o conhecimento de Deus - que, de outro
modo, seria confuso fazendo desaparecer a escuridão -, mostra-nos, com clareza
transparente, o Deus Verdadeiro.
Constitui, pois uma dádiva
singular o fato de Deus - para instruir a igreja -, servir-Se não apenas de
mestres mudos, mas, ainda, abrir sua boca sacrossanta para não simplesmente
proclamar que se deve adorar a Deus, mas também, ao mesmo tempo, declarar que
Ele é esse Deus a quem devemos adorar. E não ensina Ele meramente aos eleitos
que devem obedecer a Deus, mas mostra-Se como Aquele a Quem eles devem
obedecer. Este modo de agir Deus tem mantido para com sua igreja, desde o
princípio, de modo que, afora essas evidências comuns, Ele aplicasse também a
palavra que é a marca direta e segura para reconhecê-LO.
Nem é para se duvidar de que
Adão, Noé, Abraão e os demais patriarcas - em função deste recurso - tenham
conseguido mais íntimo conhecimento de Deus, fato que, de certo modo, os
destingue dos incrédulos. Não estou falando ainda da doutrina da fé, pela qual
eles haviam sido iluminados para a esperança da vida eterna. Ora, para que pudessem
eles passar, da morte para a vida, foi necessário que eles conhecessem a Deus
não apenas como Criador, mas também como Redentor, pois eles chegaram a
conhecer a Deus desses dois modos, seguramente, através da Palavra.
Ora, pela ordem, veio primeiro
aquela modalidade de conhecimento mediante o qual lhes foi dado compreender
quem é Deus, por meio de Quem o mundo foi criado e é governado. Em seguida,
acrescentou-se, depois, a outra modalidade de conhecimento, interior, porque só
esse conhecimento vivifica as almas mortas e só por ele se conhece a Deus não
apenas como Criador do universo, Autor e Árbitro único de todas as coisas que
existem, mas também na Pessoa do Mediador, como Redentor. Contudo, porque não
tratei ainda da queda do mundo e da corrupção da natureza, não apresento ainda,
aqui, o remédio.
Devem lembrar-se, portanto, os
leitores de que não farei ainda considerações a respeito do pacto, mediante o
qual Deus adotou, para Si, os filhos de Abraão, mas tratarei ainda daquela
parte da doutrina pela qual os fiéis sempre foram apropriadamente separados das
pessoas profanas, por aquela doutrina se fundamenta em Cristo (e, por isso,
deve ser abordada na seção Cristológica); Agora, entretanto, só focalizarei
como se deve aprender, da Escritura, que Deus como Criador, se distingue - por
meio de marcas seguras - de toda a inventada multidão de deuses. Oportunamente
depois, a própria seqüência dos fatos conduzirá ao estudo da redenção. Embora
devamos derivar muitos testemunhos do Novo Testamento, e outros testemunhos da
lei e dos profetas - onde se faz clara referência a Cristo -, sabemos que todos
estes testemunhos visam mostrar que Deus, o Artífice do universo, se torna
patente na Escritura e nela também se ensina o que devemos pensar a respeito de
Deus, para que não busquemos, por caminhos tortuosos, alguma divindade incerta.
A Bíblia é a Palavra de Deus
Escrita
Quer Deus Se tenha feito
conhecido, aos patriarcas, através de visões ou oráculos, quer tenha dado a
conhecer - mediante a obra e ministério de homens -, aquilo que, depois,
transmitiria a pósteros pelas próprias mãos, está fora de dúvida que Deus
gravou, no coração deles, a firme certeza da doutrina, de modo que fossem
convencidos de que procedia de Deus o que haviam aprendido. Por isso Deus, pela
Sua Palavra, tornou a fé segura para sempre, fazendo-a superior a toda mera
opinião. Finalmente para que em perpétua continuidade de doutrina, a verdade
permanecesse no mundo, sobrevivendo a todos os séculos, quis Deus que esses
mesmos oráculos - que deixou em depósito com os Patriarcas -, fossem
registrados como em públicos instrumentos. Com este propósito foi promulgada a
Lei, à qual se acrescentaram, depois, como intérpretes, os Profetas.
Ora, se bem que foi múltiplo o
uso da lei - como se verá no lugar mais adequado -, na verdade, foi dada
especialmente a Moisés e a todos os profetas (a responsabilidade de) ensinar o
modo de reconciliação entre Deus e os homens, fato que levou Paulo a dizer que
Cristo é o fim da Lei (Rm.10:4). Contudo, torno a afirmar que, além da
apropriada doutrina da fé e do arrependimento - que apresenta Cristo como
Mediador -, a Escritura adorna, com sinais e marcas inconfundíveis, o Deus
Único e Verdadeiro como Criador e Governador do mundo, para que Ele não seja
confundido com a espúria multidão de deuses.
Portanto, por mais que ao homem
sério convenha levar em conta as obras de Deus - um vez que foi ele colocado no
belíssimo teatro do mundo para ser espectador da obra divina -, contudo, para
ele poder aproveitá-la melhor, precisa dar ouvido à Palavra. Por isso, não é de
admirar que os que nasceram nas trevas endureçam, mais e mais, a sua
sensibilidade, visto que muito poucos se submetem docilmente à Palavra de Deus,
de maneira a respeitar os seus limites; ao contrário, antes se gloriam em sua
presunção.
Mas, para que a verdadeira
religião resplandeça em nós, é preciso que ela seja o ponto de partida da
doutrina celeste, pois não pode provar se quer o mais leve gosto da reta e sã
doutrina, senão aquele que se tornar discípulo da Escritura. Pois o princípio
do verdadeiro entendimento vem do fato de abraçar-mos, reverentemente, o Deus
testifica de Si mesmo na Escritura. Da obediência à Palavra de Deus nascem não
somente a fé consumada e completa, em todos os seus aspectos, mas também todo
reto conhecimento de Deus. E neste aspecto, fora de toda dúvida, Deus, com
singular providência, levou em conta os mortais em todos os tempos.
A Bíblia é o Único Escudo que
Nos Protege do Erro
De fato, se refletirmos quão
acentuado é a tendência da mente humana para esquecer a Deus, quão grande é a
inclinação dos homens para com toda espécie de erro e quão pronunciado é o
gosto deles para forjar, a cada instante, novas fantasiosas religiões,
poderemos perceber como foi necessário a autenticação escrita da doutrina
celeste, para que ela não desaparecesse pelo esquecimento, nem se desfizesse
pelo erro, nem fosse corrompida pela petulância dos homens.
Deste modo, como está
sobejamente demonstrado, Deus providenciou o auxilio de Sua Palavra para todos
aqueles aquém quis instruir de maneira eficaz, pois sabia ser insuficiente a
impressão de Sua Imagem na estrutura do universo. Portanto, se desejamos, com
seriedade, contemplar a Deus de forma genuína, precisamos trilhar a reta vereda
indicada na Sua Palavra.
Importa irmos à Palavra na
qual, de modo vivo e real, Deus Se apresenta a nós em função de Suas obras, ao
mesmo tempo em que essas mesmas obras são apreciadas, não sendo o nosso
julgamento corrompido, mas de acordo com a norma da verdade eterna. Se nos
desviarmos da Palavra, como ainda há pouco frisei, mesmo que nos esforcemos com
grande empenho - pelo fato de a corrida ser fora da pista - jamais
conseguiremos atingir a meta. Devemos pensar que o esplendor da face divina,
que até mesmo o Apóstolo Paulo reconhece ser inacessível (I Tm.6:16), é para
nós um labirinto emaranhado, no qual só podemos entrar se, através dele, formos
guiados pelo fio da Palavra. Por isso, é preferível andar mancando, ao longo
deste caminho a correr velozmente fora dele!
É por isso que, não poucas
vezes, nos Salmos 93, 96, 97 e outros, ensinando que devemos tirar do mundo as
superstições, para que floresça a religião pura, Davi representa a Deus como
Aquele que reina, dando a entender, pelo termo reinar, não o poder de que Deus
está investido e que exerce no governo universal da natureza, mas significando
a doutrina pela qual reivindica, para Si, a legítima soberania, visto que
jamais se pode arrancar os erros do coração humano, enquanto nele não se
implantar o verdadeiro conhecimento de Deus.
A Revelação da Bíblia é
Superior a Revelação da Criação
Por isso, onde o mesmo profeta
afirma que os céus proclamam a glória de Deus, que o firmamento anuncia as
obras das Suas mãos e que a regular seqüência dos dias e das noites apregoa a
Sua majestade (Sl19:1-2), em seguida faz menção de Sua Palavra: "A Lei do
Senhor" diz ele, "é perfeita e restaura as almas; o testemunho do
Senhor é fiel e dá sabedoria aos simples; os mandamentos do Senhor são retos e
alegram o coração; o preceito do Senhor é puro e ilumina os olhos"
(Sl19:7-8). Ora, ainda que faça referência a outros usos da Lei, assinala ele,
contudo, de modo geral, que Deus ainda que em vão convide a Si todos os povos, pela
contemplação de Suas obras, oferece a Escritura como a única escola de Seus
filhos.
Idêntica é a maneira como o
Profeta fala no Sl.29, porque, depois de discursar a respeito da terrível voz
de Deus - que sacode a terra com trovões, ventanias, chuvas, furacões e
tempestades, fazendo tremer as montanhas e despedaçando os cedros - acrescenta,
ao final, que no santuário de Deus se cantam louvores, visto que os incrédulos
são surdos a todas as vozes de Deus, que ressoam nos ares! Da mesma maneira
conclui ele outro Salmo, onde descreve as espantosas ondas do mar:
"Confirmados foram os Teus testemunhos; a santidade é, para sempre, a
formosura do Teu templo"(Sl.93:5). Daí vem também o que Cristo disse à
mulher samaritana (Jo.4:22): que a gente dela e os outros povos adoravam o que
desconheciam; que só os judeus prestavam culto ao Deus verdadeiro!
Ora, já que a mente humana, por
causa da sua estupidez, não pode chegar até Deus, a menos que seja guiada e
sustentada por Sua Sagrada Palavra, com exceção dos judeus (que eram guiados
pela Palavra) todos os mortais - pelo fato de buscarem a Deus sem a Palavra -,
tiveram de vagar na estultície e no erro!

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Pregando a Verdade
21 junho, 2010
0 Cristo, o pleno cumprimento do Sábado - João Calvino
O
SENTIDO TIPOLÓGICO DO SÉTIMO DIA
A observância de um dia dentre
cada sete representava aos judeus esta cessação perpétua de atividades, a qual,
para que fosse cultivada com religiosidade maior, o Senhor a recomendou com seu
próprio exemplo. Pois é de não somenos valia para aquecer o zelo do homem que
saiba estar trilhando à imitação do Criador.
Se alguém procura algum sentido
secreto no número sete, uma vez que na Escritura este é o número da perfeição,
não sem causa foi ele escolhido para expressar perpetuidade. Ao que também
confirma isto: que Moisés põe termo à descrição da sucessão de dias e noites
com o dia em que narra haver o Senhor descansado de suas obras. Pode-se também
apresentar outro significado provável do número, isto é, que o Senhor assim indicou
que o sábado nunca haverá de ser absoluto até que tenha chegado o último dia.
Pois aqui começamos nosso bem-aventurado descanso nele, descanso em que fazemos
diariamente novos progressos. Mas, porque ainda incessante é a luta com a
carne, não se haverá de consumar antes que se cumpra aquele vaticínio de Isaías
[66.23], enquanto a lua nova for continuada por lua nova, sábado por sábado,
até quando, na verdade, Deus vier a ser tudo em todas as coisas [1Co 15.28].
Portanto, pode parecer que,
mediante o sétimo dia, o Senhor tenha delineado a seu povo a perfeição futura
de seu sábado no Último Dia, a fim de que, pela incessante meditação do sábado,
a esta perfeição aspirasse por toda a vida.
CRISTO,
O PLENO CUMPRIMENTO DO SÁBADO
Se a alguém desagrada esta
interpretação do número como sendo por demais sutil, nada impeço a que a tome
em termos mais simples, a saber: que o Senhor estabeleceu um dia determinado em
que o povo se exercitasse, sob a direção da lei, a meditar na incessabilidade
do descanso espiritual; que Deus designou o sétimo dia, ou porque previa ser o
mesmo suficiente para isso, ou para que, proposta uma imitação de seu exemplo,
melhor estimulasse o povo, ou, na realidade, o exortasse a não atentar para o sábado com outro propósito
senão que o conformasse a seu Criador.
Ora, pouco interessa que
interpretação se adote, desde que subsista o mistério que principalmente se
delineia: o referente ao perpétuo descanso de nossos labores. A contemplar
isto, os Profetas reiteradamente revocavam os judeus, para que não pensassem
haver-se desincumbido da obrigação do sábado com a simples cessação física do
trabalho. Além das passagens já referidas, assim tens em Isaías [58.13, 14]:
“Se apartares do sábado teu pé, para que não faças tua vontade em meu santo
dia, e ao sábado chamares deleitoso e o dia santo do Senhor glorioso, e o glorificares,
não seguindo teus caminhos e não fazendo tua vontade, de sorte que fales tua
palavra, então te deleitarás no Senhor” etc.
Mas, não há dúvida de que pela
vinda do Senhor Jesus Cristo o que era aqui cerimonial foi abolido. Pois ele é
a verdade, por cuja presença se desvanecem todas as figuras; o corpo, a cuja
visão são deixadas para trás as sombras. Ele é, digo-o, o verdadeiro cumprimento
do sábado. Com ele, sepultados através do batismo, fomos enxertados na
participação de sua morte, para que, participantes de sua ressurreição, andemos
em novidade de vida [Rm 6.4]. Por isso, escreve o Apóstolo em outro lugar que o
sábado tem sido uma sombra da realidade futura, e que o corpo, isto é, a sólida
substância da verdade, que bem explicou naquela passagem, está em Cristo [Cl
2.17]. Esta não consiste em apenas um dia, mas em todo o curso de nossa vida, até
que, inteiramente mortos para nós mesmos, nos enchamos da vida de Deus. Portanto,
que esteja longe dos cristãos a observância supersticiosa de dias.

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19 junho, 2010
0 Esperando em Deus – João Calvino
Esperando
esperei por jehovah, e ele se inclinou
para mim e ouviu meu clamor. E tirou-me duma cova estrondosa, dum lodo
lamacento, e pôs meus pés sobre uma rocha, e firmou bem meus passos. E pôs em
minha boca um novo cântico, um hino a nosso Deus; muitos verão isso, e temerão,
e confiarão em jehovah.(Sal 401-3)
1.
Esperando esperei. O início deste Salmo constitui uma expressão de
gratidão na qual Davi relata que fora libertado, não apenas do perigo, mas
também da presença da morte. Há quem defenda a opinião, mas sem boas razões, de
que esta oração deve ser entendida como resultado de uma enfermidade. Deve-se,
sim, pressupor que Davi, nesta passagem, envolve uma infinidade de perigos dos
quais ele escapara. Certamente estivera mais de uma vez exposto ao maior de todos
os perigos, a morte; de sorte que, com boas razões, podia dizer que fora
tragado pelo abismo da morte e atolado em lodo lamacento. Não obstante, o que
transparece é que sua fé ainda continuava firme, porquanto não cessou de
confiar em Deus, embora a longa permanência da calamidade deixara sua paciência
à mercê da exaustão. Ele não nos diz simplesmente que havia esperado, mas pela
repetição do mesmo verbo revela que fora deixado por longo tempo em angustiante
expectativa.
A medida, pois, que sua provação
se prolongava, a evidência e prova de sua fé em suportar a delonga com calma e
equanimidade mentais se faziam ainda mais patentes. O significado em suma
consiste em que, embora Deus delongasse seu socorro, não obstante o coração de
Davi não desfaleceu, nem se cansou; antes, depois de dar, por assim dizer, suficiente
demonstração de sua paciência, por fim foi ouvido. Em seu exemplo surge diante
de nós uma doutrina muito proveitosa, a saber: embora Deus não se apresse em
surgir em nosso socorro, no entanto propositadamente nos mantém em suspenso e
perplexidade; entretanto, não devemos perder a coragem, já que a fé não é
totalmente provada senão pela longa espera. O resultado também, do qual ele
fala em termos de louvor, deve inspirar-nos com crescente constância. É
possível que Deus nos socorra mais lentamente do que gostaríamos, mas quando
parece não tomar ele conhecimento de nossa condição, ou, se é que podemos usar
tal expressão, quando parece inativo e a dormitar, isso é totalmente diferente
de enganar; pois se somos incapazes de suportar, mediante o vigor e o poder
invencíveis da fé, o tempo oportuno de nosso livramento por fim se manifestará.
2.
E me tirou duma cova estrondosa. Há quem traduza: do covil da
desolação? visto que o verbo shadh, do qual o substantivo shaon, se deriva, significa destruir ou
devastar, tanto quanto ressoar ou ecoar. Mas é mais apropriado considerar que
há aqui uma alusão aos abismos profundos, donde as águas jorram com força
violenta. Com esta similitude ele mostra que fora exposto a um iminente perigo
de morte como se houvera sido precipitado num poço profundo, estrondoso pela
impetuosa fúria das águas. Com o mesmo propósito é também a similitude de o
lodo lamacento, pelo qual ele informa que estivera tão perto de ser submerso
pelo volume de suas calamidades, que não lhe fora fácil desvencilhar-se delas.
Em seguida surge súbita e incrível mudança, pela qual ele manifesta a todos a
grandeza da graça que lhe fora concedida. Declara que seus pés foram postos
sobre uma rocha, enquanto anteriormente se vira submerso em água; e que seus
passos foram bem firmados, enquanto anteriormente não só eram vacilantes e
escorregavam, mas também se viu atolado na lama.
3.
E pôs em minha boca um novo cântico. Na primeira cláusula do
versículo, ele conclui a descrição do que Deus lhe havia feito. Com a
expressão, Deus pôs um novo cântico em minha boca, ele denota a consumação de seu
livramento. Seja qual for a maneira em que Deus se agrada em socorrer-nos, ele
não exige nada mais de nós senão que sejamos agradecidos pelo socorro e o
guardemos na memória. Portanto, à medida em que ele nos concede seus
benefícios, abramos imediatamente nossa boca e louvemos seu nome. Visto que
Deus, ao agir liberalmente em nosso favor, nos encoraja a cantar seus louvores,
Davi com razão reconhece que, havendo sido tão portentosamente liberto, o tema
de um novo cântico lhe fora fornecido. Ele usa o termo novo no sentido de raro
e não ordinário, uma vez que a forma de seu livramento for singular e digna de
eterna memória. É verdade que não há benefício divino tão minúsculo que
dispense nossos mais elevados louvores; quanto mais ele estende sua mão, porém,
visando a nos socorrer, mais devemos exercitar-nos a um fervoroso zelo neste
santo exercício, de sorte que nossos cânticos correspondam à grandeza do favor
que porventura nos tenha sido conferido.
Muitos
o verão. Aqui o salmista estende ainda mais o fruto do auxílio
[divino] que experimentara, dizendo-nos que o mesmo provera os meios de
instrução comum a todos. Por certo que a vontade de Deus é que os benefícios
que ele derrama sobre cada um dos fiéis sejam provas da benevolência que ele
põe constantemente em ação em favor de todos eles, de modo que um, instruído
pelo exemplo do outro, sem dúvida a mesma graça se manifestará beneficiando a
cada um deles. Os termos temor e esperança, ou confiança, à primeira vista não
parecem harmonizar-se. Davi, porém, não os juntou impensadamente; pois ninguém
jamais nutrirá a esperança do favor divino senão aquele cuja mente é antes
imbuída com o temor de Deus. Entendo temor em termo geral significando o
sentimento de piedade que se produz em nós pelo conhecimento do poder, da
eqüidade e da misericórdia de Deus. O juízo que Deus exerceu contra os inimigos
de Davi serviu, é verdade, para inspirar em todos os homens o temor [divino];
em minha opinião, porém, Davi antes pretende dizer, pelo livramento que obtivera,
que muitos seriam induzidos a consagrar-se ao serviço de Deus e a submeter-se,
com toda reverência, à sua autoridade, porquanto o conheceriam como o Juiz do
mundo. Ora, todo aquele que cordialmente se submete à vontade de Deus necessariamente
associará a esperança com o temor; especialmente quando surge diante de seus
olhos a evidência da graça pela qual Deus costuma atrair a si todos os homens.
Pois eu já disse que Deus se manifesta ante nossos olhos como misericordioso e
bondoso para com outros, a fim de que nos asseguremos de que ele será o mesmo
em relação a nós. Quanto ao verbo, verão, do qual Davi faz uso, devemos
entendê-lo como uma referência não só aos olhos, mas também e principalmente à
percepção da mente. Todos, sem distinção, viram o que acontecera, a muitos
deles, porém, nunca chegaram a reconhecer o livramento de Davi como sendo obra
divina. Visto, porém, que tantos são cegos relativamente às obras de Deus,
aprendamos que somente os que se consideram possuidores da faculdade
perceptiva, a quem foi dado o Espírito de discernimento, os quais não ocupam
sua mente em pousar sobre os meros eventos que sucedem, mas têm a capacidade de
discernir em si, pela fé, a mão secreta de Deus.

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17 junho, 2010
0 Concepções Errôneas quanto à Natureza da Igreja
- Com seu dilema, não tão
prementemente nos arrocham que nos forcem a confessar, ou que a Igreja esteve
por algum tempo semimorta, ou que agora estejamos nós em conflito com a Igreja.
A Igreja de Cristo certamente tem estado viva, e viva continuará por quanto
tempo Cristo reinar à destra do Pai, por cuja mão é ela sustentada, por cuja
proteção é guardada, por cujo poder ela retém sua intangibilidade. Pois ele cumprirá, indubitavelmente, o que uma
vez prometera, a saber, que haverá de estar com os seus até a consumação do
mundo [Mt 28.20]. No momento não sustentamos contra ela nenhuma luta, uma vez
que, em pleno consenso com todo o corpo dos fiéis, cultuamos e adoramos ao Deus
único e a Cristo, o Senhor [1Co 8.6], nos moldes em que tem sido sempre adorado
por todos os piedosos. Entretanto, eles não se desviam pouco da verdade, quando
não reconhecem nenhuma Igreja senão aquela que descortinam pela visão natural e
a tentam circunscrever aos limites a que, de modo algum, foi ela confinada.
A controvérsia gira nestes
gonzos: primeiro, que eles contendem dizendo que a forma da Igreja é sempre
concreta e visível; segundo, que identificam a própria forma com a sé da igreja
romana e a ordem de seus prelados. Nós afirmamos, em contrário, não só que a
Igreja pode subsistir sem nenhuma expressão visível, nem que ela contém a forma
nesse esplendor externo que estultamente admiram, mas, em marca bem diferente,
a saber, na pregação pura da Palavra de Deus e na legítima administração dos
sacramentos.
Eles se exasperam quando nem
sempre podem apontar a Igreja com o dedo. Quão freqüentemente, porém, aconteceu
de ela deformar-se ante o povo judeu a tal
ponto que não podia ser distinguida por nenhuma aparência? Que forma
pensamos haver ela refulgido, quando Elias deplorava por ter ficado sozinho?
[1Rs 19.14].
Quanto tempo, desde a vinda de
Cristo, ela ficou obscura e sem forma? Quantas vezes, desde essa época, ela foi
de tal modo oprimida por guerras, por revoltas, por heresias, que em parte
alguma fosse contemplada com esplendor? Se porventura tivessem vivido nesse
tempo, teriam crido existir então alguma Igreja? Elias, porém, ouviu que foram
conservados sete mil homens que não tinham dobrado os joelhos diante de Baal
[1Rs 19.18]. Tampouco nos deve pairar alguma dúvida de que Cristo sempre reinou
na terra, desde que subiu ao céu. Com efeito, se então os piedosos houvessem requerido
alguma forma perceptível aos olhos, porventura não teriam prontamente cedido ao
desânimo?
Aliás, já em seu século,
Hilário havia considerado ser um mal superlativo que, tomados de estulta
admiração pela dignidade episcopal, não se apercebiam que se ocultava por
debaixo dessa máscara mortífera e sinistra, porque assim fala contra Auxêncio:
“De uma coisa vos advirto: Guardai-vos do Anticristo! Pois é mal que de vós se
haja apoderado o amor às paredes, mal que venerais a Igreja de Deus em tetos e
edifícios, mal que sob essas coisas introduzis o nome de paz. Porventura é
passível de dúvida que nestes o Anticristo haverá de assentar-se? A mim mais
seguros são as montanhas, as florestas, os lagos, os cárceres e as furnas. Pois
nestes, profetiza o Profeta, ou habitam, ou são lançados.”
Entretanto, o que hoje o mundo
venera em seus bispos cornudos, senão que presume serem santos prelados da
religião aqueles a quem vê presidirem às cidades de maior renome? Fora,
portanto, com tão estulta admiração! Antes, pelo contrário, uma vez que só ele
sabe quem são os seus [2Tm 2.19], permitamos ao Senhor isto: às vezes ele até
mesmo priva a visão dos homens da percepção exterior de sua Igreja. Confesso que
isso é o que merece a impiedade dos homens; por que porfiamos nós em opor-nos à
justa vingança de Deus? Em moldes como esses, o Senhor puniu em tempos idos a
ingratidão dos homens. Ora, visto que não quiseram obedecer-lhe à verdade, e
sua luz extinguiram, quis ele que, tornando-se cegos em seu entendimento, não
só fossem enganados por falsidades absurdas, mas ainda imersos em trevas
profundas, de tal sorte que não se evidenciasse nenhuma expressão exterior da
verdadeira Igreja.
Contudo, em todo o tempo em que
ela foi extinta, ele preservou os seus, ainda que não só dispersos, mas até
mesmo submersos em meio aos erros e às trevas. Nem é de admirar, pois, que
soube preservá-los tanto na própria confusão de Babilônia, quanto na chama da
fornalha ardente.
Entretanto, o fato de quererem
julgar a forma da Igreja em função de não sei que vã pompa, o quanto isso é
perigoso, e para que a exposição não se prolongue desmedidamente, o indicarei
em poucas palavras, em vez de tecer-lhe longa consideração. O pontífice,
insistem, que ocupa a sé apostólica, e quantos foram por ele ungidos e
consagrados sacerdotes, uma vez que sejam assinalados por suas mitras e báculos,
representam a Igreja e devem ser tidos como a Igreja. Por isso eles não podem
errar. Por quê? Porque são pastores da Igreja e consagrados ao Senhor.
E porventura Arão e os demais
guias de Israel não eram pastores? Contudo Arão e seus filhos, já investidos
sacerdotes, no entanto erraram quando forjaram o bezerro [Ex 32.4]. Segundo
este raciocínio, por que não teriam representado a Igreja aqueles quatrocentos
profetas que mentiam a Acabe? [1Rs 22.11, 12]. A Igreja, porém, estava do lado
de Micaías, por certo um homem sozinho e desprezível, de cuja boca, entretanto,
procedia a verdade.
Porventura os profetas não
levavam diante de si não só o nome, como também a forma da Igreja, quando à uma
se insurgiram contra Jeremias e, ameaçadores, se jactavam de que não era
possível que a lei perecesse ao sacerdote, o conselho ao sábio, a palavra ao
profeta? [Jr 18.18]. Jeremias é enviado sozinho contra toda essa horda de
profetas, para que da parte do Senhor denunciasse que acontecerá que a lei perecerá
ao sacerdote, o conselho ao sábio, a palavra ao profeta! [Jr 4.9].
Por acaso não refulgia tal
esplendor naquela assembléia que os sacerdotes, os escribas e os fariseus
reuniram a fim de captar pareceres acerca de como tirariam a vida a Cristo? [Mt
26.3, 4; Jo 11.47-53; 12.10]. Que se vão agora e se apeguem à máscara exterior,
e assim se façam cismáticos a Cristo e a todos os profetas de Deus; por outro
lado, que façam dos ministros de Satanás órgãos do Espírito Santo!
Ora, se estão falando a sério,
respondam-me em boa fé: entre que agentes e lugares pensam que a Igreja residia
depois que, por decreto do Concílio de Basiléia, Eugênio foi deposto e alijado
do pontificado e Amadeu investido em seu lugar? Ainda que se arrebentem, não
podem negar que, no que tange à exterioridade, esse Concílio foi legítimo, além
de tudo convocado não apenas por um pontífice, mas por dois. Eugênio foi ali
condenado de cisma, rebelião e contumácia, juntamente com todo o bando de
cardeais e bispos que haviam com ele maquinado a dissolução do Concílio.
Entretanto, mais tarde apoiado no favor dos príncipes, recuperou integralmente o
pontificado. Em fumaça se desfez essa eleição de Amadeu, solenemente consumada
que fora pela autoridade de um sínodo geral e sacrossanto, exceto que o
supracitado Amadeu foi aplacado em virtude de um chapéu cardinalício, como um cão
a ladrar se cala quando lhe é tirado naco de carne. Do grêmio desses hereges rebeldes
e contumazes procedeu tudo quanto em seguida tem havido de papas, cardeais, bispos,
abades, padres.
Neste ponto, impõe-se
agarrá-los e imobiliza-los. Pois, a qual das duas facções conferirão o nome de
Igreja? Porventura negarão que foi esse um Concílio Geral, de nada carecendo
quanto à majestade exterior, já que, em verdade, foi solenemente convocado por
duas bulas, consagrado mediante o legado da sé romana a presidi-lo, em todas as
coisas devidamente conformado às normas regulamentares, a conservar-se sempre
na mesma dignidade até o fim? Declararão Eugênio cismáticos com toda sua
coorte, pela qual foram todos consagrados?
Portanto, ou definam a forma da
Igreja em outros termos, ou, por mais numerosos que sejam, serão por nós tidos
como cismáticos quantos, cônscia e deliberadamente, foram ordenados por
hereges.
E se nunca antes se fizesse
evidente que a Igreja não se prende a pompas externas, eles próprios podem
dizer-nos que disso constitui prova abundante, visto que, sob esse pomposo nome
de Igreja, por tanto tempo orgulhosamente se apregoaram ao mundo, quando,
entretanto, não passavam de pestes mortíferas à Igreja. Não estou me referindo
a seus costumes e àqueles atos hediondos de que empanturra o viver de todos,
quando, como os fariseus, dizem que devem ser ouvidos, não imitados [Mt 23.3].
Se devotares um pouco de teu
lazer a ler estas nossas ponderações, sem sombra de dúvida reconhecerás que a
própria, sim, a própria doutrina, à base da qual argúem que devem ser tidos
como sendo a Igreja, não passa de mortífero matadouro de almas, tocha
incendiária, ruína e destruição da Igreja.

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