27 maio, 2010
0 Não mais Vivo Eu – João Calvino
Morrer
para a lei é renunciá-la (Gl 2) e libertar-se de seu domínio,
de modo que não mais confiamos nela, e ela não mais nos mantém cativos sob o
jugo de escravidão. Ou pode significar que, visto que ela entregou a todos nós
à destruição, não encontramos nela vida alguma. Esse último ponto de vista se
adequa melhor. Pois ele nega que Cristo seja o autor do mal, por que a lei é
mais prejudicial do que útil. A lei traz em seu próprio âmago a maldição que
nos mata. Daí, segue-se que a morte efetuada pela lei é verdadeiramente
implacável. Com ela é contrastada outro tipo de morte, ou seja: na comunhão
vivificante da cruz de Cristo. Ele diz que, por estar crucificado juntamente
com Cristo, ele pode começar a viver. A pontuação comum desta passagem
obscurece seu significado. Lê-se: 'Através da lei morri para a lei, para que eu
pudesse viver para Deus." Mas o contexto flui mais polidamente assim:
'Através da lei, morri para a lei", e então separadamente: "Para que
eu pudesse viver para Deus, estou crucificado com Cristo."
Para
que eu pudesse viver. O apóstolo mostra que o tipo de morte que os
falsos apóstolos lançavam mão como base para suas querelas pode ser solicitado.
Pois ele quer dizer que estamos mortos para a lei, não que podemos viver para o
pecado, e, sim, para Deus. "Viver para Deus" às vezes significa
regular nossa vida segundo sua vontade, de modo que nada mais cogitamos em toda
a nossa vida além de sermos aprovados por ele. Mas aqui significa viver, por
assim dizer, a vida de Deus. Dessa forma a antítese se harmonizará. Pois seja
qual for o sentido de morrermos para o pecado, no mesmo sentido vivemos para
Deus. Em suma, Paulo nos diz que essa morte não é mortal, e, sim, a origem de
uma vida melhor. Pois Deus nos resgata do naufrágio da lei e, mediante sua
graça, nos restaura para outra vida. Nada direi de outras interpretações. Este
me parece ser o significado real do apóstolo.
Ao
dizer que fora crucificado com Cristo, ele está explicando como nós,
que estamos mortos para a lei, vivemos para Deus. Enxertados na morte de
Cristo, extraímos uma energia secreta dela, como os brotos [extraem vida] das
raízes. Também Cristo cravou [em sua cruz] o manuscrito da lei, o qual nos era
contrário. Portanto, sendo crucificados com ele, somos eximidos de toda a
maldição e culpa [provenientes] da lei. Atacar e descartar esse livramento é
fazer a cruz de Cristo algo vazio e fútil. Lembremo-nos, porém, que somos
libertados do jugo da lei somente quando somos feitos um com Cristo, como os
brotos extraem das raízes sua seiva somente pelo desenvolvimento de uma só
natureza.
Não
mais eu. O termo morte é sempre odioso ao espírito humano. Havendo
dito que estamos pregados na cruz juntamente com Cristo, ele acrescenta que tal
fato nos faz vi-vos. Ao mesmo tempo, ele explica o que quer dizer com
"viver para Deus". Ele não vive através de sua própria vida, mas é
animado pelo poder secreto de Cristo, de modo que se pode dizer que Cristo vive
e cresce nele. Porque, assim como a alma energiza o corpo, também Cristo
comunica vida a seus membros. Eis uma notável afirmação, ou seja, que os crentes
vivem fora de si mesmos [fideles extra se vivere], isto é, em Cristo. Isso só
se pode dar se mantiverem genuína e verdadeira comunicação com ele [veram cum ipso et substantialem
communicationem]. Cristo vive em nós de duas formas. Uma consiste em ele
nos governar por meio de seu Espírito e em dirigir todas as nossas ações. A
outra consiste naquilo que ele nos concede pela participação em sua justiça, ou
seja, que, embora nada possamos fazer por nós mesmos, somos aceitos por Deus,
nele [Cristo]. A primeira se relaciona com a regeneração; a segunda, com a
espontânea aceitação da justiça, e é assim que considero a passagem. Mas se
alguém, ao contrário, quiser aplicá-la a ambas, de boa vontade concordarei.
E a vida que agora vivo na
carne. Dificilmente exista aqui uma cláusula que não tenha sido rasgada por uma
variedade de interpretações. Alguns explicam o termo 'carne' como sendo a
depravação da natureza corrupta. Paulo, porém, pretende simplesmente significar
a vida corporal De outra forma, poder-se-ia apresentar a seguinte objeção:
"Você vive uma vida cor¬poral; e enquanto este corpo corruptível exercer
suas funções, enquanto for sustentado por comida e bebida, esta não é a vida
celestial de Cristo. Portanto, é um paradoxo irracional asseverar que, enquanto
você estiver vivendo uma vida humana ordinária, sua vida não é propriamente
sua." Paulo replica que ela consiste na fé, o que implica que ela é um
segredo oculto dos sentidos humanos. A vida, pois, que obtemos pela fé, não é
visível aos olhos, senão que é interiormente perceptível à consciência pelo
poder do Espírito. E assim a vida corporal não nos impede de possuirmos a vida
celestial, pela fé. "E, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez
assentar nos lugares celestiais com Cristo Jesus" [Ef 2.6]. Também:
"Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos,
e sois da família de Deus" [Ef 2.19]. Uma vez mais: "Pois a nossa
pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus
Cristo" [Fp 3.20]. Os escritos de Paulo estão saturados de afirmações
afins, a saber: que tanto vivemos no mundo como também já vivemos no. céu; não
só porque nossa Cabeça está lá, mas porque, em virtude da união [com ele],
temos uma vida em comum com ele [Jo 14].
Que
me amou. Esta cláusula é adicionada para expressar o poder da fé,
pois imediatamente poderia ocorrer de alguém perguntar: "Quando a fé
recebe tal poder para comunicar-nos a vida de Cristo?" Ele, pois, declara
que o fundamento [hypostasis] sobre o
qual a fé repousa é o amor e a morte de Cristo; pois é à luz desse fato que o
efeito da fé deve ser julgado. Por que razão vivemos pela fé de Cristo? Porque
ele nos amou e a si mesmo se deu por nós. Digo que o amor com que Cristo nos
abraçou, o levou a unir-se a nós. E tal coisa ele completou através de sua
morte. Ao doar-se por nós, ele sofreu em nossa pessoa [in nostra persona passus est]. Além do mais, a fé nos faz
partícipes de tudo o que ela encontra em Cristo. Tal menção do amor significa o
mesmo que João disse: "Nós amamos porque ele nos amou primeiro" [1 Jo
4.19]. Pois se algum mérito propriamente nosso o tivesse movido a redimir-nos,
tal causa teria sido declarada. Agora, porém, Paulo atribui tudo ao amor;
portanto, é gratuito. Observemos a ordem: "Ele nos amou e a si mesmo se deu
por nós." É como se dissesse: "Ele não teve outra razão para morrer,
senão porque nos amou", e isso se deu quando ainda éramos inimigos,
segundo cie mesmo declara em Romanos 5.20.
A
si mesmo se deu. Não há palavras que expressem perfeitamente o
que tal coisa significa. Pois, quem poderá encontrar uma língua que possa
declarar a excelência do Filho de Deus? Todavia, foi ele mesmo que a si mesmo
se deu como o preço àz nossa redenção. A expiação, a purificação, a satisfação
e todos os frutos que recebemos da morte de Cristo estão incluídos nas
palavras: "a si mesmo se entregou".
Por mim é muito enfático. Não é
suficiente considerar Cristo como havendo morrido pela salvação do mundo; cada
pessoa deve reivindicar o efeito e a posse dessa graça para si pessoalmente.
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