31 maio, 2010
0 A Hipocrisia e Mentira dos Falsos Líderes – João Calvino
Espíritos
sedutores (1Tm 4.1-3). Paulo está se referindo a profetas ou
mestres, aplicando-lhes esse título porque se vangloriavam de possuir o
Espírito, e ao procederem assim estavam causando impressão sobre o povo. Em
geral, é deveras verdade que todas as classes de pessoas falam da inspiração de
um espírito, mas não o mesmo espírito que inspira a todos. Pois às vezes
Satanás passa por espírito mentiroso na boca dos falsos profetas, com o fim de
iludir os incrédulos que merecem ser enganados [1 Rs 22.21-23]. Mas
todos quantos atribuem a Cristo a devida honra falam pelo Espírito de Deus, no
dizer de Paulo [1 Co 12.3]. Esse
modo de expressar-se teve sua origem na reivindicação feita pelos servos de
Deus, a saber, que todos os seus pronunciamentos públicos lhes vieram por
revelação do Espírito; e, visto que eram os instrumentos do Espírito, lhes foi
atribuído o nome do Espírito. Mais tarde, porém, os ministros de Satanás,
através de uma falsa imitação, como fazem os símios, começaram a fazer a mesma
reivindicação em seu favor, e da mesma forma falsamente assumiram o mesmo nome.
Eis a razão por que João diz: "provai os espíritos, se realmente procedem
de Deus" [1 Jo 4.1].
Além do mais, Paulo explica o
que quis dizer, acrescentando: e
doutrinas de demônios, o que eqüivale dizer: "atentando para os falsos profetas e suas doutrinas
diabólicas". Uma vez mais digamos que isso não constitui um erro de
somenos importância ou algo que deva ser dissimulado, quando as consciências
dos homens são constrangidas por invenções humanas, ao mesmo tempo que o culto
divino é pervertido.
Pela
hipocrisia, falam mentiras. Se esta frase for considerada como uma
referência aos demônios, então falar mentiras será uma referência aos seres
humanos que falam falsamente pela inspiração do diabo. Mas é possível
substituí-la por: "através da
hipocrisia dos homens que falam mentiras". Evocando um exemplo
particular, ele diz que falam mentiras hipocritamente, e são marcados com ferretes em sua consciência. E devemos observar que
essas duas coisas se relacionam intimamente, e que a primeira flui da segunda.
As más consciências que são marcadas com o ferrete de seus maus feitos lançam
mão da hipocrisia como um refúgio seguro, a saber, engendram pretensões
hipócritas com o fim de embaralhar os olhos de Deus. Aliás, esse é o mesmo
expediente usado por aqueles que tentam agradar a Deus com ilusórias
observâncias externas.
E assim, a palavra hipocrisia deve ser entendida em relação
ao presente contexto. Ela deve ser considerada primeiramente em relação à
doutrina, e significando que gênero de doutrina é esse que substitui o culto
espiritual de Deus por gesticulações corporais, e assim adultera sua genuína
pureza, e então inclui todos os métodos inventados pelos homens para apaziguar a
Deus ou obter seu favor. Seu significado pode ser assim sumariado: em primeiro
lugar, que todos os que introduzem uma santidade forjada estão agindo em
imitação ao diabo, porquanto Deus jamais é adorado corretamente através de
meros ritos externos. Os verdadeiros adoradores "o adorarão em espírito e
em verdade" [Jo 4.24]. E, em segundo lugar, que esse culto externo é uma
medicina inútil por meio da qual os hipócritas tentam mitigar suas dores, ou,
melhor, um curativo sob o qual as más consciências ocultam suas feridas sem
qualquer valia, a não ser para agravar ainda mais sua própria ruína.
Proibindo
o matrimônio. Havendo descrito a falsa doutrinação em termos
gerais, ele agora toma nota de dois exemplos específicos dela - a proibição do
matrimônio e de certos alimentos. Tal atitude tem sua origem na hipocrisia que
abandona a genuína santidade e então sai em busca de algo mais à guisa de
dissimulação. Pois aqueles que não se abstêm da soberba, do ódio, da avareza,
da crueldade e de coisas afins, tentam adquirir justiça por seus próprios
esforços, abstendo-se daquelas coisas que Deus deixou para o nosso livre uso. A
única razão por que as consciências são sobrecarregadas por tais leis é porque
a perfeição está sendo buscada à parte da lei de Deus. Isso é feito pelos
hipócritas que, procurando transgredir impunemente aquela justiça interior que
alei requer, tentando ocultar sua perversidade interior por meio de
observâncias externas, com as quais se encobrem como com véus.
Isso se constituía numa clara
profecia do perigo que não seria difícil de se observar, se os homens
atentassem para o Espírito Santo que fez registrar uma advertência tão
distinta. Não obstante, percebemos que as trevas de Satanás geralmente
prevaleciam, de tal sorte que a clara luz dessa perfeita e memorável predição
não deixou de cumprir-se. Não muito depois da morte dos apóstolos levantaram-se
os encratitas ~ que derivaram seu
nome do termo grego, continência —, os tacianistas*,
os catarístas, Montanocom sua seita e finalmente os maniqueus, que sentiam extrema aversão por carne como alimento e
pelo matrimônio, e condenavam a ambos como sendo profanos. Ainda que tenham
sido repudiados pela Igreja em razão de sua arrogância em pretenderem obrigar
os demais a sujeitarem-se a seus pontos de vista, não obstante tornou-se
evidente que, mesmo aqueles que os resistiram, cederam aos seus erros mais do
que lhes era conveniente. Esses de quem estou falando agora não tiveram
intenção de impor uma nova lei aos cristãos, contudo atribuíam mais importância
a observâncias supersticiosas, como abstinência do matrimônio e de carne como
alimento. Tal é a característica do mundo, sempre imaginando que Deus pode ser
cultuado de uma forma carnal, como se ele mesmo fosse carnal. A situação se
tornava gradualmente pior, até que um estado de tirania se fez prevalecente, ao
ponto de o matrimônio não mais ser lícito aos sacerdotes ou monges, ou que em
todos ou em certos dias não comerem carne. Por conseguinte, temos boas razões
para hoje crer que essa profecia se aplica aos papistas, visto que obrigam o
celibato e a abstinência de alimentos mais rigorosamente do que a obediência a
qualquer dos mandamentos de Deus. Acreditam que podem escapar da acusação de
torcer as palavras de Paulo, fazendo-as aplicar-se aos tacianistas, aos
maniqueus ou a grupos afins, como se os tacianistas não pudessem tê-la evitado
da mesma forma, voltando as censuras de Paulo contra os catafrinenses e contra
Montano, o autor dessa seita; ou como se os catafrinenses não pudessem
facilmente fazê-la retroceder contra os encratistas como culpados em seu lugar.
Aqui, porém, Paulo não está preocupado com pessoas, e, sim, com os pontos de
vista que elas defendiam; e mesmo que surgisse uma centena de seitas
diferentes, todas elas laborando sob a mesma hipocrisia em exigir a abstinência
de alimentos, todas estariam incorrendo na mesma condenação.
Portanto, debalde se faz que os
papistas evoquem os antigos hereges como sendo eles os únicos alvos da
condenação paulina. E mister que vejamos bem se porventura não são igualmente
culpados. Alegam que são distintos dos encratistas e maniqueus, porquanto não
proíbem de forma absoluta o matrimônio e alimentos, senão que obrigam a
abstinência de carne somente em certos dias, e exigem um voto de celibato
somente aos monges, sacerdotes e freiras. Mas essa é uma desculpa completamente
frívola, porquanto fazem a santidade consistir dessas coisas e estabelecem um
culto a Deus falso e espúrio, bem como escravizam as consciências humanas com
uma compulsão da qual devem estar totalmente livres.
No quinto livro de Eusébio há
um fragmento dos escritos de Apolônio no qual, entre outras coisas, repreende
Montano por ser o primeiro a dissolver o matrimônio e a estabelecer regras para
o jejum. Ele não diz que Montano proibisse universalmente o matrimônio ou
certos alimentos. É suficiente impor às consciências humanas uma obrigação de
se fazer essas coisas e cultuar a Deus através de sua observância. Proibir
coisas que são de livre uso, seja em termos universais, seja em casos
especiais, é sempre uma tirania diabólica. Mas isso se tornará ainda mais óbvio
à medida que certos tipos de alimentos aparecerem na próxima cláusula.
Os
quais Deus criou. É mister que notemos bem a razão apresentada
por que devemos viver contentes com a liberdade que Deus nos concedeu no uso
dos alimentos. E porque Deus os criou para esse fim. Eles proporcionam o maior
contentamento a todos os piedosos, por saberem que todos os tipos de alimentos
que comem lhes são postos nas mãos pelo Senhor, para que desfrutem deles de
modo puro e legítimo. Como é possível que os homens excluam o que Deus
graciosamente concedeu? Podem, porventura, criar alimentos? Ou podem,
porventura, invalidar a criação de Deus? Lembremo-nos sempre de que Aquele que
criou é também o mesmo que nos faz desfrutar de sua criação, e é debalde que os
homens tentem proibir o que Deus criou para o nosso uso.
Deus criou o alimento para ser recebido, ou seja, para o nosso
usufruto. Ele, porém, acrescenta: com
ações de graças, pois o único pagamento com que podemos retribuir a Deus
por sua liberalidade para conosco é dando testemunho de nossa gratidão. E
assim, ele expõe a uma maior execração os perversos legalistas que, mediante
novas e precipitadas sanções, obstruíam o sacrifício de louvor que Deus
especialmente requer que lhe ofereçamos. Além do mais, não é possível haver
ações de graças sem sobriedade e moderação, e não é possível haver genuíno
reconhecimento da benevolência divina por parte de alguém que impiamente a
insulta.

28 maio, 2010
0 A Avidez pelo Dinheiro – João Calvino
Mas tu, ó homem de Deus, foge
dessas coisas... (1 Tm 6.11,12) - Ao denominar Timóteo de
homem de Deus, o apóstolo adiciona peso à sua exortação. Se alguém concluir ser
conveniente restringir sua aplicação ao apelo para seguir após a justiça, a piedade,
a fé e a paciência, ao que ele está precisamente dizendo, então este será
o seu antídoto para corrigir-se a avidez pelo dinheiro. Ele diz a
Timóteo que as aspirações que ele devia seguir são de caráter espiritual. Mas
pode aplicar-se ainda mais amplamente ao contexto mais remoto, ou seja, que
Timóteo, mantendo-se isento de toda vaidade, evitasse a fútil curiosidade, [perierguia], a qual condenara um pouco
antes. Aquele que se mantém totalmente ocupado com as questões básicas,
facilmente se manterá livre das coisas que são supérfluas. Ele menciona algumas
formas de virtudes, à luz das quais podemos concluir que as demais estão também
incluídas. Quem quer que se devote a buscar a justiça, que almeje a piedade, a
fé e o amor, e que cultive a paciência e a mansidão, não poderá deixar de
abominar a avareza e seus frutos.
Combate
o bom combate. Na próxima epístola ele diz que nenhum soldado
se envolve em negócios alheios à sua vocação [2 Tm 2.4]. Por isso aqui, com o fim de poupar Timóteo de excessiva
preocupação com os afazeres terrenos, ele o exorta a lutar. A displicência e o comodismo
emanam da preocupação que os homens sentem em servir a Cristo sem problemas,
como se fosse um passa-tempo, enquanto que Cristo convoca a todos os seus
servos para a guerra. Com o fim de encorajar Timóteo a lutar bravamente no
campo de batalha, o apóstolo denomina essa luta de bom combate, ou seja,
combate abençoado e que, portanto, de forma alguma deve ser evitado. Pois se os
soldados terrenos não hesitam em combater quando a vitória é incerta e correm o
risco de perder a vida, quanto mais bravamente devemos nós lutar sob o comando
e a bandeira de Cristo, onde podemos alimentar de antemão a certeza da vitória,
especialmente quando sabemos que há um galardão à nossa espera, o qual está
muito acima dos galardões geralmente conferidos pelos comandantes a seus
homens, ou seja, uma gloriosa imortalidade e a bem-aventurança celestial. Seria
indigno se com uma esperança dessa natureza diante de nós ainda esmorecêssemos
ou caíssemos pela exaustão. E isso é precisamente o que o apóstolo continua
dizendo.
Toma
possa da vida eterna. É como se ele dissesse: "Deus te convoca para a vida
eterna, portanto despreza o mundo e esforça-te por alcançá-la." Ao
dizer a Timóteo que tomasse posse dela, ele o proíbe de desistir ou de
deixar-se dominar pelo cansaço em meio à trajetória. E como se dissesse: "Nada se concretiza até que tenhamos
obtido a vida futura, à qual Deus nos convida." Por conseguinte, em
Filipenses 3.12 ele declara que se esforçava por progredir, visto que a vida
eterna não estava ainda concretizada.
Para
a qual foste chamado. Visto, porém, que os homens lutam
precipitadamente e sem qualquer objetivo de caráter perene, caso não tenham
ainda Deus a dirigir sua trajetória e a estimulá-los à atividade, o apóstolo
menciona também a vocação deles. Nada poderá encher-nos de mais coragem do que
o reconhecimento de que fomos chamados por Deus. Pois desse fato podemos
inferir que o nosso labor, que está sob a direção divina e no qual Deus nos
estende sua mão, não ficará infrutífero. Portanto, pesaria sobre nós uma acusação
muito grave caso rejeitássemos o chamado divino. Contudo, deve exercer sobre
nós uma influência muito forte ouvir: "Deus te chamou para a vida eterna.
Cuidado para que não te desvies para alguma fantasia, ou de alguma forma
fracasses no caminho antes que o tenhas percorrido."
E
fizeste a boa confissão. Ao mencionar a vida pregressa de Timóteo,
Paulo o incita ainda mais a perseverar. Fracassar depois de ter feito um bom
começo é mais lamentável do que nunca haver começado. A Timóteo, que até então
havia agido bravamente e granjeado louvor, o apóstolo apresenta este poderoso
argumento: que o seu ponto de chegada correspondesse ao seu ponto de partida.
Entendo confissão, aqui, no sentido não de algo expresso verbalmente, mas,
antes, de algo realizado de forma concreta, e não numa única ocasião, mas ao
longo de todo o seu ministério. Significando, pois: "Tu contas com muitas
testemunhas de tua pública confissão, tanto em Éfeso como em outros países, a
saber: que elas têm assistido a tua viva fidelidade e seriedade em teu
testemunho do evangelho; e tendo transmitido um exemplo tão positivo, agora
outra coisa não podes ser senão um bom soldado de Cristo, caso não queiras
incorrer em maiores vexames e infortúnios." A luz desse fato aprendemos a
seguinte lição geral: quanto mais eminentes nos tornamos, menos justificativa
temos em fracassar e mais obrigados somos a nos manter em nossa firme
trajetória.

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27 maio, 2010
0 Não mais Vivo Eu – João Calvino
Morrer
para a lei é renunciá-la (Gl 2) e libertar-se de seu domínio,
de modo que não mais confiamos nela, e ela não mais nos mantém cativos sob o
jugo de escravidão. Ou pode significar que, visto que ela entregou a todos nós
à destruição, não encontramos nela vida alguma. Esse último ponto de vista se
adequa melhor. Pois ele nega que Cristo seja o autor do mal, por que a lei é
mais prejudicial do que útil. A lei traz em seu próprio âmago a maldição que
nos mata. Daí, segue-se que a morte efetuada pela lei é verdadeiramente
implacável. Com ela é contrastada outro tipo de morte, ou seja: na comunhão
vivificante da cruz de Cristo. Ele diz que, por estar crucificado juntamente
com Cristo, ele pode começar a viver. A pontuação comum desta passagem
obscurece seu significado. Lê-se: 'Através da lei morri para a lei, para que eu
pudesse viver para Deus." Mas o contexto flui mais polidamente assim:
'Através da lei, morri para a lei", e então separadamente: "Para que
eu pudesse viver para Deus, estou crucificado com Cristo."
Para
que eu pudesse viver. O apóstolo mostra que o tipo de morte que os
falsos apóstolos lançavam mão como base para suas querelas pode ser solicitado.
Pois ele quer dizer que estamos mortos para a lei, não que podemos viver para o
pecado, e, sim, para Deus. "Viver para Deus" às vezes significa
regular nossa vida segundo sua vontade, de modo que nada mais cogitamos em toda
a nossa vida além de sermos aprovados por ele. Mas aqui significa viver, por
assim dizer, a vida de Deus. Dessa forma a antítese se harmonizará. Pois seja
qual for o sentido de morrermos para o pecado, no mesmo sentido vivemos para
Deus. Em suma, Paulo nos diz que essa morte não é mortal, e, sim, a origem de
uma vida melhor. Pois Deus nos resgata do naufrágio da lei e, mediante sua
graça, nos restaura para outra vida. Nada direi de outras interpretações. Este
me parece ser o significado real do apóstolo.
Ao
dizer que fora crucificado com Cristo, ele está explicando como nós,
que estamos mortos para a lei, vivemos para Deus. Enxertados na morte de
Cristo, extraímos uma energia secreta dela, como os brotos [extraem vida] das
raízes. Também Cristo cravou [em sua cruz] o manuscrito da lei, o qual nos era
contrário. Portanto, sendo crucificados com ele, somos eximidos de toda a
maldição e culpa [provenientes] da lei. Atacar e descartar esse livramento é
fazer a cruz de Cristo algo vazio e fútil. Lembremo-nos, porém, que somos
libertados do jugo da lei somente quando somos feitos um com Cristo, como os
brotos extraem das raízes sua seiva somente pelo desenvolvimento de uma só
natureza.
Não
mais eu. O termo morte é sempre odioso ao espírito humano. Havendo
dito que estamos pregados na cruz juntamente com Cristo, ele acrescenta que tal
fato nos faz vi-vos. Ao mesmo tempo, ele explica o que quer dizer com
"viver para Deus". Ele não vive através de sua própria vida, mas é
animado pelo poder secreto de Cristo, de modo que se pode dizer que Cristo vive
e cresce nele. Porque, assim como a alma energiza o corpo, também Cristo
comunica vida a seus membros. Eis uma notável afirmação, ou seja, que os crentes
vivem fora de si mesmos [fideles extra se vivere], isto é, em Cristo. Isso só
se pode dar se mantiverem genuína e verdadeira comunicação com ele [veram cum ipso et substantialem
communicationem]. Cristo vive em nós de duas formas. Uma consiste em ele
nos governar por meio de seu Espírito e em dirigir todas as nossas ações. A
outra consiste naquilo que ele nos concede pela participação em sua justiça, ou
seja, que, embora nada possamos fazer por nós mesmos, somos aceitos por Deus,
nele [Cristo]. A primeira se relaciona com a regeneração; a segunda, com a
espontânea aceitação da justiça, e é assim que considero a passagem. Mas se
alguém, ao contrário, quiser aplicá-la a ambas, de boa vontade concordarei.
E a vida que agora vivo na
carne. Dificilmente exista aqui uma cláusula que não tenha sido rasgada por uma
variedade de interpretações. Alguns explicam o termo 'carne' como sendo a
depravação da natureza corrupta. Paulo, porém, pretende simplesmente significar
a vida corporal De outra forma, poder-se-ia apresentar a seguinte objeção:
"Você vive uma vida cor¬poral; e enquanto este corpo corruptível exercer
suas funções, enquanto for sustentado por comida e bebida, esta não é a vida
celestial de Cristo. Portanto, é um paradoxo irracional asseverar que, enquanto
você estiver vivendo uma vida humana ordinária, sua vida não é propriamente
sua." Paulo replica que ela consiste na fé, o que implica que ela é um
segredo oculto dos sentidos humanos. A vida, pois, que obtemos pela fé, não é
visível aos olhos, senão que é interiormente perceptível à consciência pelo
poder do Espírito. E assim a vida corporal não nos impede de possuirmos a vida
celestial, pela fé. "E, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez
assentar nos lugares celestiais com Cristo Jesus" [Ef 2.6]. Também:
"Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos,
e sois da família de Deus" [Ef 2.19]. Uma vez mais: "Pois a nossa
pátria está nos céus, de onde também aguardamos o Salvador, o Senhor Jesus
Cristo" [Fp 3.20]. Os escritos de Paulo estão saturados de afirmações
afins, a saber: que tanto vivemos no mundo como também já vivemos no. céu; não
só porque nossa Cabeça está lá, mas porque, em virtude da união [com ele],
temos uma vida em comum com ele [Jo 14].
Que
me amou. Esta cláusula é adicionada para expressar o poder da fé,
pois imediatamente poderia ocorrer de alguém perguntar: "Quando a fé
recebe tal poder para comunicar-nos a vida de Cristo?" Ele, pois, declara
que o fundamento [hypostasis] sobre o
qual a fé repousa é o amor e a morte de Cristo; pois é à luz desse fato que o
efeito da fé deve ser julgado. Por que razão vivemos pela fé de Cristo? Porque
ele nos amou e a si mesmo se deu por nós. Digo que o amor com que Cristo nos
abraçou, o levou a unir-se a nós. E tal coisa ele completou através de sua
morte. Ao doar-se por nós, ele sofreu em nossa pessoa [in nostra persona passus est]. Além do mais, a fé nos faz
partícipes de tudo o que ela encontra em Cristo. Tal menção do amor significa o
mesmo que João disse: "Nós amamos porque ele nos amou primeiro" [1 Jo
4.19]. Pois se algum mérito propriamente nosso o tivesse movido a redimir-nos,
tal causa teria sido declarada. Agora, porém, Paulo atribui tudo ao amor;
portanto, é gratuito. Observemos a ordem: "Ele nos amou e a si mesmo se deu
por nós." É como se dissesse: "Ele não teve outra razão para morrer,
senão porque nos amou", e isso se deu quando ainda éramos inimigos,
segundo cie mesmo declara em Romanos 5.20.
A
si mesmo se deu. Não há palavras que expressem perfeitamente o
que tal coisa significa. Pois, quem poderá encontrar uma língua que possa
declarar a excelência do Filho de Deus? Todavia, foi ele mesmo que a si mesmo
se deu como o preço àz nossa redenção. A expiação, a purificação, a satisfação
e todos os frutos que recebemos da morte de Cristo estão incluídos nas
palavras: "a si mesmo se entregou".
Por mim é muito enfático. Não é
suficiente considerar Cristo como havendo morrido pela salvação do mundo; cada
pessoa deve reivindicar o efeito e a posse dessa graça para si pessoalmente.

25 maio, 2010
0 Grande é o mistério da piedade – (1 Tm 3.16) – João Calvino
Aqui temos uma maior expansão
de louvor. Para impedir que a verdade de Deus seja estimada abaixo de seu real
valor, em decorrência da ingratidão humana, o apóstolo declara seu genuíno
valor, dizendo que o segredo da piedade é imensurável, visto que ele não trata
de temas triviais, e, sim, da revelação do Filho de Deus, em quem estão ocultos
todos os tesouros da sabedoria [Cl 2.3]. A luz da imensidão dessas coisas, os
pastores devem entender a importância de seu ofício e devotar-se a ele com a
mais profunda consciência e reverência.
Deus
se manifestou em carne. A Vulgata exclui a palavra 'Deus' e
relaciona o que se segue com o mistério; mas isso é devido à. falta de perícia
e conformidade, como se verá claramente à luz de uma leitura atenciosa; e ainda
que ela conte com o apoio de Erasmo, este destrói a autoridade de sua própria
tradução, de modo que a mesma dispensa qualquer refutação de minha parte. Todos
os manuscritos gregos, indubitavelmente, concordam com a tradução: "Deus
se manifestou em carne." Mas, mesmo presumindo que Paulo não houvesse
expressamente escrito a palavra Deus, quem quer que considere todo o assunto
com cuidado concordará que se deve pôr a palavra Cristo. No que me toca, não
tenho dificuldade alguma em seguir o texto grego aceito. E óbvia sua razão para
denominar a manifestação de Cristo, a qual agora passa a descrever, de 'grande
mistério', porque esta é a altura, a largura, o comprimento e a profundidade da
sabedoria que ele menciona em Efésios 3. 18, e pelo quê nossas faculdades são
inevitavelmente subjugadas.
Examinemos agora as diferentes
cláusulas deste versículo em sua ordem. A descrição mais adequada da pessoa de
Cristo está contida nas palavras "Deus se manifestou em carne". Em
primeiro lugar, temos aqui uma afirmação distinta de ambas as naturezas, pois o
apóstolo declara que Cristo é ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro
homem. Em segundo lugar, ele põe em evidência a distinção entre as duas
naturezas, pois primeiramente o denomina de Deus, e em seguida declara sua
manifestação em carne. E, em terceiro lugar, ele assevera a unidade de sua
Pessoa, ao declarar que ela era uma e mesma Pessoa que era Deus e que se
manifestou em carne. Nesta única frase, a fé genuína e ortodoxa é poderosamente
armada contra Ario, Marcião, Nestório e Eutico. Há forte ênfase no contraste
das duas palavras: Deus e carne. A diferença entre Deus e o homem é imensa, e
todavia em Cristo vemos a glória infinita de Deus unida à nossa carne poluída,
de tal sorte que ambas se tornaram uma só [videmusin
Christoconiunctam curnhac nostra carnisputredine, ut unum efficiant].
Justificado
no espírito. Como o Filho de Deus a si mesmo se esvaziou ao
tomar para si nossa carne [Fp 2.7], assim também manifestou-se nele um poder
espiritual que testificou que ele era Deus. Esta passagem tem sido interpretada
de diferentes formas, mas fico satisfeito em explicar a intenção do apóstolo
como a entendo sem adicionar nada mais. Em primeiro lugar, a justificação,
aqui, significa um reconhecimento do poder di-vino, como no Salmo 19.9, onde se
diz que os juízos de Deus são justificados, ou seja, maravilhosa e
completamente perfeitos. Note-se também o Salmo 51.4, onde se diz que Deus é
justificado, significando que o louvor de sua justiça se exibe claramente.
Assim também em Mateus 11.19 e Lucas 7.35, onde Cristo diz que a sabedoria é
justificada por seus filhos, significando que neles o valor da sabedoria se
evidencia. Além do mais, em Lucas 7.29 se diz que os publicanos justificavam a
Deus, significando que na devida reverência e gratidão reconheciam a graça de
Deus que discerniam em Cristo. Portanto, o que lemos aqui tem o mesmo sentido
se Paulo dissesse que aquele que se manifestou vestido de carne humana foi
declarado ao mesmo tempo ser o Filho de Deus, de modo que a fragilidade da
carne de forma alguma denegriu sua glória.
A palavra 'Espírito' ele inclui
tudo o que em Cristo era di-vino e superior ao homem; e isso ele o faz por duas
razões. Primeira, visto que Cristo fora humilhado na carne, Paulo agora
contrasta o Espírito com a carne, ao exibir nitidamente sua glória. Segunda, a
glória, digna do unigênito Filho de Deus, que João afirma ter visto em Cristo
[Jo 1.14], não consistia de uma manifestação externa ou de esplendor terreno,
senão que era quase totalmente espiritual. A mesma forma de expressão é usada
no primeiro capítulo de Romanos [1.3,4]: "o qual, segundo a carne, veio da
descendência de Abraão e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o
espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo,
nosso Senhor"; mas com esta diferença, ou seja, que nesta passagem ele
menciona uma manifestação especial de sua glória, a saber, a ressurreição.
Visto
pelos anjos, proclamado às nações. Todas essas afirmações são
maravilhosas e espantosas, ou seja: que Deus se dignou conferir aos gentios - o
que até então havia sido vago e incerto ante a cegueira de suas mentes - a
revelação de seu Filho que estivera oculto dos próprios anjos celestiais!
Porque, dizer que ele foi visto pelos anjos significa que essa foi uma visão
que, por sua novidade e excelência, atraiu a atenção dos anjos. Quão singular e
extraordinária foi a vocação dos gentios é algo que já explicamos na exposição
de Efésios 2. Nem causa estranheza que a mesma tenha atraído a visão dos anjos,
porque, ainda que tivessem conhecimento da redenção da humanidade, afinal não
sabiam como seria ela realizada, e teria sido oculta deles com o fim de que a
grandeza da benevolência divina pudesse ser contemplada por eles com admiração
mais intensa.
Crido
no mundo. E espantoso, acima de tudo, que Deus haja concedido igual
participação de sua revelação aos gentios profanos e aos anjos que eram a
eterna herança de seu reino. Mas essa poderosa eficácia do evangelho proclamado
pelo qual Cristo venceu todos os obstáculos e introduziu à obediência da fé os
que pareciam completamente incapazes de ser subjugados, não era de forma alguma
um milagre comum. Certamente, nada parecia ser mais improvável, tão
com-pletamente fechada e selada estava a entrada. Não obstante, por meio de uma
vitória quase incrível, a fé venceu.
Finalmente, o apóstolo diz que
ele foi recebido na glória, ou seja,
depois desta vida mortal e miserável. Portanto, quer no mundo, pela obediência
de fé, quer na pessoa de Cristo, uma maravilhosa mudança se operou, pois ele
foi exaltado do execrável estado de servo à gloriosa destra do Pai, para que
todo joelho se dobre diante dele.

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24 maio, 2010
0 A Piedade para tudo é Proveitosa - João Calvino
Pois
o exercício físico é para pouco proveitoso (1 Tm 4.8). Pela
expressão, exercício físico, o apóstolo não se refere ao esporte da caça, ou da
corrida, ou proceder a uma escavação, ou de luta corporal, ou de algum trabalho
manual; ao contrário, ele está falando de ações externas empreendidas em função
da religião, a saber, vigílias, jejuns prolongados, prostração em terra e atos
afins. Ele não está aqui censurando a observância supersticiosa dessas coisas,
pois a seguir ele as condena totalmente, ao escrever para os Colossenses
[2.21]. Aqui, porém, ele apenas desdenha delas e afirma que são de pouco
proveito. Portanto, mesmo que o coração seja puro e o motivo justo, Paulo não
encontra nada nas ações externas que seja de algum valor real. Eis aqui uma advertência
indispensável, pois o mundo sempre revela forte tendência para cultuar a Deus
por meio de observâncias externas, o que pode ser fatal. Mesmo deixando a noção
perversa de que há méritos nelas, nossa natureza sempre nos dispõe fortemente a
pensar que a vida ascética é de grande valor, como se fosse uma parte notável
da santificação cristã. Não existe prova mais clara disso do que o fato de logo
depois Paulo emitir esse mandamento, um tipo fútil de exercício cor¬poral
conquistou a admiração imoderada de toda a terra.
De tal monasticismo surgiram
as ordens de monges e freiras e quase toda a mais excelente disciplina da
antiga igreja, pelo menos aquela parte dela que foi mais altamente estimada
pela opinião popular. Se os antigos monges não tivessem crido de haver alguma
perfeição divina ou angélica em suas austeras regras de vida, e jamais a teriam
praticado com tanto ardor. Da mesma forma, se os pastores não tivessem
indevidamente super valorizado as práticas então observadas como meio de se
mortificar a carne, jamais as teriam requerido de maneira tão estrita. Todavia
Paulo expressa o contrário, ou seja: mesmo que um homem se haja fatigado com
muitos e prolongados exercícios, o proveito será pouco e insignificante; porque
não passam de rudimentos de uma disciplina pueril.
Mas
a piedade para tudo é proveitosa. Significa que ao homem que
possui piedade nada falta, mesmo que não tenha a pequena assistência que essas
práticas ascéticas podem oferecer. A piedade é o ponto de partida, o meio e o
fim do viver cristão; e onde ela é completa, não existe lacuna alguma. Cristo
não seguiu um modo ascético de vida como João Batista, e no entanto não lhe era
absolutamente inferior, nem um mínimo sequer. Portanto, a conclusão é que
devemos concentrar-nos exclusivamente sobre a piedade, pois quando a tivermos
alcançado, Deus não requererá de nós nada mais; e devemos prestar atenção nos
exercícios corporais só até onde eles não obstruam nem retardem a prática da
piedade.
Tendo
a promessa. É um conforto muitíssimo profundo saber que
Deus não deseja que ao piedoso falte alguma coisa. Havendo decretado que nossa
perfeição estaria radicada na piedade, ele agora faz provisão para que a mesma
encontre sua concretização na genuína felicidade. E já que ela, nesta vida, é a
fonte da felicidade, ele estende a esta vida, também, as promessas da graça
divina, a qual só pode trazer-nos felicidade e sem a qual seremos os mais
miseráveis dos homens. Pois Deus declara que mesmo nesta vida ele nos será por
Pai. Devemos, porém, lembrar de fazer distinção entre as bênçãos da vida
presente e as da vida futura.
Pois neste mundo Deus nos abençoa de maneira que
só desfrutamos de uma mera prelibação de sua benevolência, e através dessa
prelibação somos atraídos a desejar as bênçãos celestiais para que nelas
sejamos plenamente saciados. Eis a razão por que as bênçãos da presente vida
são não só mescladas, mas também destruídas por muitas aflições, pois não é bom
que tenhamos abundância aqui e a seguir suceda que ela nos conduza à luxúria.
Além do mais, para que não suceda de alguém tentar extrair desta passagem a
doutrina dos méritos [humanos], devemos observar que a piedade inclui não só
uma consciência íntegra em relação ao homem e reverência em relação a Deus, mas
também fé e oração.

22 maio, 2010
0 Se eu falar as línguas dos homens e dos anjos - Calvino
Em 1 Co 13.1-3, Paulo toma como ponto de partida a eloqüência, a qual,
em si mesma, é um dom muito excelente, mas que, quando se vê divorciado do
amor, de nada serve para alguém obter o favor divino. Ao referir-se a línguas
dos anjos, ele faz uso de hipérbole para algo notável ou raro. Todavia, prefiro
dar-lhe uma interpretação precisa, como se referindo aos diferentes gêneros de
linguagens. Pois os coríntios, que avaliavam o valor de todas as coisas pela
reputação que podiam dar-lhes, e não pelos resultados que se produziam, davam
muito valor à habi¬lidade de falar muitas línguas. Paulo está dizendo:
"Podeis ter a posse de todas as línguas, não só as de todos os homens, mas
as dos próprios anjos, e ainda muito mais. Contudo, a impressão que se tem é
que Deus não vos considera como sendo de mais valor que um símbalo, por assim
dizer, se porventura não possuis o amor."
E
se tiver o dom de profecia. Paulo também reduz a nada o valor deste
dom, embora o classificasse acima de todos os demais, caso ele não esteja
sujeito ao amor. Conhecer todos os mistérios pode dar a idéia de haver sido
adicionado à profecia à guisa de explicação; mas, visto que conhecimento vem
logo em seguida, e de haver feito menção separada do conhecimento num contexto
anterior, deve-se ponderar se porventura o conhecimento de mistérios não é
usado aqui em vez de sabedoria. Ao mesmo tempo que não devemos ser dogmáticos
aqui, todavia sinto-me muitíssimo atraído para este ponto de vista.
A fé da qual ele faz referência
aqui é de caráter especial, como se faz óbvio das palavras que a acompanham, ou
seja: "ao ponto de remover montanhas". Portanto, os sofistas estão
desperdiçando seu tempo em interpretar este versículo à revelia, ao ponto de
roubarem o poder da fé. Por isso, à luz do fato de a palavra 'fé' possuir
muitos matizes de significado o leitor de discernimento deve observar bem o
sentido em que ela é usada aqui. Ora, Paulo se constitui em seu próprio
intérprete (segundo já realcei), porquanto, aqui, ele limita a fé a milagres. É
a isso que Crisóstomo chama "a fé de sinais ou milagres"; e nós,
"a fé particular", visto que ela não se prende a Cristo em sua
plenitude, mas somente ao seu poder de efetuar milagres. Esta é a razão por que
os homens podem, às vezes, exercer essa fé, mesmo não possuindo o Espírito de
santificação, como foi o caso de Judas.
E
se eu doar todos os meus bens. Considerada em si mesma, esta
coragem certamente merece o mais elevado louvor. Porém, visto que a renúncia de
coisas às vezes tem suas raízes no egoísmo, e não na genuína generosidade; ou,
por outro lado, porque um homem generoso às vezes se vê destituído dos demais
aspectos do amor (já que um sentimento generoso é apenas um elemento do amor),
pode suceder que uma ação, por mais louvável que seja em outros aspectos, pode
ser considerada pelos homens como algo realmente esplêndido, e fazê-la objeto
de seus louvores, e no entanto ser tida como de absoluta nulidade aos olhos de
Deus.
E
se entregar meu corpo. Indubitavelmente, Paulo está falando,
aqui, do martírio, o qual se constitui no ato mais excelente e supremo de
todos. Pois o que é mais admirável do que aquela inabalável firmeza de caráter,
quando alguém não hesita em oferecer sua vida em testemunho do evangelho?
Todavia, até mesmo isto Deus também reputa como sendo de nenhum préstimo, caso
o coração seja destituído de amor. Não obstante, o gênero de castigo que ele
menciona aqui não era o único geralmente infligido aos cristãos. Pois lemos
que, naqueles dias, os tiranos que almejavam desarraigar a Igreja procediam
contra eles [cristãos] usando mais a espada do que o fogo, excetuando Nero que,
em sua demência, também recorria ao incêndio. Mas tudo indica que o Espírito
está a predizer, pela instrumentalidade de Paulo, que gênero de perseguições
estava por vir. Porém, isto é incidental. O ponto-mestre deste versículo é o
seguinte: visto que o amor é a única regra que deve governar nossas ações, e a
única diretriz para o correto uso dos dons divinos, Deus não aprova nada que
esteja destituído de amor, não importa quão magnificentes os conceitos humanos
venham a ser. Pois, sem o amor, a mais bela de todas as virtudes não passa de
mera aparência, um ruído vazio de significação, não mais digna que a moínha; em
resumo, não passa de algo grosseiro e ofensivo.

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21 maio, 2010
0 A Causa da Justifidação – João Calvino
E
a lei não provém de fé (Gl 3.12,13). Indubitavelmente, a lei não
conflita com a fé; do contrário, Deus seria inconsistente consigo mesmo. Mas
devemos sempre volver-nos para o fato de que a linguagem de Paulo é adaptada a
essas circunstâncias particulares. A contradição entre a lei e a fé está na
causa da justificação. E mais fácil o leitor unir fogo e água do que conciliar
as duas afirmações, ou seja: que os homens são justificados pela fé e pela lei.
A lei não provém de fé, ou seja, a lei possui um método de justificar uma
pessoa que é completamente estranho à fé.
Aquele que os pratica por eles
viverá. A diferença está no fato de que, quando alguém cumpre a lei, ele é
declarado justo por uma justiça legal. O apóstolo prova isso citando Moisés.
Ora, qual é a justiça da fé? Ele a definiu em Romanos 10.9: "Se cremos que
Cristo morreu por nossos pecados etc."
E no entanto não se segue que a
fé é ociosa ou que os crentes estejam isentos de boas obras. Pois a presente
questão não é se os crentes devem cumprir a lei até onde o podem (o que é fora
de toda dúvida), mas se obtêm justiça por praticar boas obras; tal coisa é
impossível. Além do mais, caso alguém objete: "Visto que Deus promete vida aos praticantes da lei, por que Paulo
nega que os mesmos são justos?" A resposta não é difícil. Ninguém é
justo por meio das obras da lei, porque não existe alguém que as realize
[perfeitamente]. Admitimos que os praticantes da lei, se porventura houvesse
um, seriam justos. Mas, visto que há uma conformidade condicional, todos estão
excluídos da vida, porque ninguém oferece a justiça que deve. Devemos ter em
mente o que eu já disse, ou seja, que praticar a lei não é obedecê-la em parte,
mas cumprir tudo o que pertence à justiça. E de tal perfeição todos estão longe
demais.
Cristo
nos redimiu. O apóstolo fez todos os que se encontram
debaixo da lei sujeitos à maldição. Daí a grande dificuldade que os judeus
encontravam em não poder livrar-se da maldição da lei. Ele soluciona a
dificuldade apresentando o remédio. E isso confirma ainda mais o seu propósito.
Pois se somos salvos em razão de termos sido isentados da maldição da lei,
então a justiça não pode ser procedente da lei. Em seguida ele adiciona o modo
como somos libertados.
Está
escrito: maldito todo aquele que for
pendurado em madeiro. Cristo foi pendurado. Com toda certeza, porém, ele
não sofreu tal castigo por sua própria culpa. Segue-se, pois, ou que ele foi
crucificado em vão, ou que a nossa maldição foi lançada sobre ele para que
pudéssemos ficar livres dela. Ora, o apóstolo não diz que Cristo era maldito,
porém algo mais, a saber: que ele se fez maldição, significando que a maldição
de todos nós foi lançada sobre ele. Se isso parecer abrupto a alguém, que o tal
também se envergonhe da cruz de Cristo, em cuja confissão nos gloriamos. Deus
não ignorava o tipo de morte que seu Filho morreria, quando pronunciou:
"Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro."
Mas, como é
possível, objetaria alguém, que o Bem-Amado Filho fosse amaldiçoado por seu
Pai? Minha resposta é que há duas coisas que devem ser consideradas, não só na
pessoa de Cristo, mas até mesmo em sua natureza humana. Uma, é que ele era o
imaculado Cordeiro de Deus, cheio de bênção e de graça. A outra, é que ele
assumiu o nosso lugar, e assim se tornou um pecador e sujeito à maldição, não
em si mesmo, mas em nós; todavia, de tal maneira que lhe era indispensável agir em nosso nome. Ele não podia estar
fora da graça de Deus, e no entanto suportou sua ira. Pois como poderia ele
reconciliar-nos consigo se considerasse o Pai um inimigo c fosse odiado por
ele? Portanto, a vontade do Pai sempre repousou sobre ele. Além disso, como
poderia ele ter-nos livrado da ira de Deus se não a houvesse transferido para
si próprio? Portanto, ele foi atingido por nossos pecados, e conheceu a Deus
como um Juiz irado e inexorável. Eis a loucura da cruz c o espanto dos anjos, a
qual não só excede, mas também traga toda a sabedoria do mundo.

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20 maio, 2010
0 Sua Graça não foi em Vão - João Calvino
Porque
sou o menor (1Co 15. 9,10). Não é certo se seus inimigos falavam isso
aos outros com o intuito de enfraquecer sua confiança nele, ou se ele procedeu
assim numa confissão inteiramente extraída de sua livre vontade. Quanto a mim,
não tenho dúvida de que ele jamais teve a menor hesitação de estar preparado e
mesmo feliz em se subestimar a fim de magnificar a graça divina, embora eu
suspeite que neste versículo ele pretendesse refutar falsas acusações assacadas
contra ele. Em Corinto, havia pessoas que se ocupavam de minar sua autoridade,
falando maliciosamente contra ele. Podemos deduzir tal fato das muitas
passagens precedentes, e também de uma comparação que ele introduz um pouco
mais adiante, o que jamais faria se não fora forçado a assim fazer pela
fraqueza de algumas pessoas. Ele poderia ter posto assim: "Insultai-me
tanto quanto vos agrade, eu não me importarei de ser rebaixado abaixo do
próprio pó; não me importarei de ser tido na conta de nada, para que a
benevolência divina para comigo esteja em muito maior evidência. Portanto, que
eu seja considerado como o menor dos apóstolos; na verdade, tenho consciência
de nem mesmo merecer essa posição [e título]. Pois, que méritos tive eu que
seria capaz de alcançá-lo? Quando costumava perseguir a Igreja de Deus, o que
merecia, pois? Porém, não há necessidade alguma de determinardes minha
dignidade, porque o Senhor não dá a menor importância ao tipo de homem que fui,
mas, pela operação de sua graça, ele fez de mim outro homem."
O que importa é o seguinte: Paulo
não recusa ser o menor de todos, na verdade quase uma nulidade,
contanto que, ao ser assim considerado, não constituísse um obstáculo ao seu
ministério, em qualquer sentido, e nem prejudicasse um mínimo sequer o seu ensino.
Ele se sente plenamente satisfeito consigo mesmo ao ser considerado indigno de
qualquer honra, contanto que pudesse encomendar seu apostolado em razão da
graça que lhe fora concedida. E Deus certamente não o honra com dons mui
excelentes para que sua graça seja sepultada no olvido, mas sua intenção era
tornar o apostolado de Paulo o mais notável e o mais confiável possível.
E
sua graça... não foi em vão. Aqueles que se põem
deliberadamente em oposição à graça de Deus, temendo que venhamos fazê-lo totalmente
responsável por tudo o que de bom fazemos, torcem estas palavras para que se
ajustem ao seu ponto de vista, como se Paulo estivesse vangloriando-se de que,
por seus próprios esforços, cuidasse de impedir a Deus de lhe conferir sua
graça para nenhum propósito. Conseqüentemente, chegaram à conclusão de que a
graça é certamente oferecida por Deus, mas o uso correto dela é algo que o
homem tem em seu próprio poder, e a responsabilidade de obtê-la, mantendo-a latente,
é sua. Nego, porém, que estas palavras de Paulo dêem qualquer apoio a esse
ponto de vista equivocado, porque neste versículo ele não está reivindicando
nada para si mesmo, como se tivesse feito, independentemente de Deus, algo
louvável. Então, o que ele quer dizer? A fim de não dar a impressão de fazer fútil
ostentação, com todo o vocabulário, porém carente de realidade, ele declara que
está afirmando aquilo que está à vista para quem quiser ver. Finalmente,
concedido que estas palavras mostram que Paulo não fazia mau uso da graça de
Deus, e não a tornou inútil por sua própria negligência, todavia sou de opinião
que não temos qualquer justificativa, por essa conta, para dividir entre ele e
Deus o louvor que deve ser atribuído exclusivamente a Deus, à vista do fato de
que Deus nos outorga não só a capacidade de agir bem, mas também a vontade de
agir bem e o resultado de nossos esforços.
Trabalhei muito mais. Alguns
acreditam que esta expressão se direciona aos fanfarrões que, ao denegrirem a
pessoa de Paulo, estavam promovendo a si próprios e a seus futuros interesses
pessoais; porque, segundo este ponto de vista, não seria digno de Paulo querer
entrar em competição com os apóstolos. Mas quando ele se compara aos apóstolos,
ele o faz motivado por pessoas ímpias que tinham o hábito de confrontá-lo com
eles a fim de rebaixarem sua reputação, segundo vemos na epístola aos Gálatas
(1.11). Assim, é bem provável que ele esteja falando dos apóstolos, quando
avalia seus próprios esforços acima dos esforços deles. E certamente é verdade
que ele se sobressaía nas demais áreas, não só em suportar muitas dificuldades,
em passar por muitas provas e experiências, em abster-se de muitas coisas para
cujo uso ele tinha toda a liberdade, mas porque o Senhor estava coroando seus
esforços com uma maior medida de sucesso. Pois considero 'labor' como que
significando os resultados que deviam ser vistos em seu trabalho.
Não
eu, mas a graça de Deus que era comigo. Ao omitir o relativo [que], a
Vulgata deu aos que não conhecem o grego uma oportunidade de cometer equívoco.
Porquanto ela traz: "Não eu, mas a graça de Deus comigo", o que leva
à conclusão que só a metade do crédito é atribuída a Deus, enquanto que a outra
metade é atribuída ao homem. Portanto, o seu raciocínio é que Paulo não agia
por conta própria, porquanto nada poderia fazer sem a graça cooperante,
enquanto que, ao mesmo tempo, seu próprio livre-arbítrio e seus próprios
esforços tinham sua própria participação na ação. Porém, suas palavras vibram
uma nota completamente diferente, pois, havendo dito que algo lhe era
aplicável, ele corrige isto e o transfere inteiramente para Deus; inteiramente,
insisto, e não apenas uma parte; pois afirma que, seja o que for que pareça ter
sido feito por ele, na verdade era totalmente obra da graça. Este é deveras um
versículo notável, não só em reduzir a pó o orgulho humano, mas também em fazer
evidente como a graça divina age em nós. Porque, como se tivesse cometido um
equívoco em fazer dele mesmo a fonte de algo bom, Paulo corrige o que havia
dito, e declara que a graça de Deus é a causa eficiente de tudo. Não devemos
imaginar que Paulo está meramente simulando humildade, aqui. Ele está falando
de seu coração, como costuma fazer, e porque sabe que esta é a plena verdade.
Devemos, pois, aprender que o único bem que temos é aquele que o Senhor nos
concedeu graciosamente; que o único bem que praticamos é aquele que ele produz
em nós; que nada fazemos por nós mesmos, senão que agimos somente quando somos
influenciados; em outras palavras, quando estamos sob a direção e influência do
Espírito Santo.

19 maio, 2010
0 Autoconfiança – João Calvino
- Por esse motivo, aquele que
pensa estar de pé, preste atenção para que não venha a cair (1Co 1012). -
Paulo conclui, à luz do
precedente, que não devemos ensoberbecer-nos de como começamos, ou de nosso
progresso, de modo a nos tornarmos complacentes e indolentes. Pois os coríntios
se sentiam tão vangloriosos de sua própria situação que se esqueceram de quão
fracos eram, e caíram em muitas práticas vergonhosas e nocivas. Mergulharam
numa injustificada autoconfiança, semelhante à que os profetas estavam sempre a
condenar no povo de Israel. Porém, visto que os papistas torcem este versículo
com o fim de estabele¬cer seu ímpio dogma de que devemos viver sempre num
estado de incerteza no tocante à fé, notemos bem que existem dois gêneros de
confiança.
Um repousa nas promessas
divinas, de modo que o crente é convencido, em seu coração, de que Deus jamais
o deixa, e, escudado nesta invencível convicção, ele enfrenta a Satanás e ao
pecado, alegre e destemidamente. Ao mesmo tempo, contudo, rememorando suas
próprias fraquezas, ele se abandona em Deus, em temor e humildade, e, em sua
angústia, se confia a ele de boa vontade. Este tipo de confiança é algo santo e
saudável, e não pode ser alienado da fé, como é evidente de muitas passagens da
Escritura, especialmente Romanos 8.33.
O outro tipo de confiança tem suas
raízes na indiferença, quando os homens ardem de orgulho em virtude dos dons
que possuem, e vivem completamente despreocupados sobre sua própria situação,
senão que, ao contrário, aquiescem nela como se estivessem fora do alcance de
qualquer perigo; com o danoso resultado de se verem expostos a todos os ataques
de Satanás. E este tipo de confiança que Paulo deseja que os coríntios
renunciem, porquanto ele percebia que sua presunção repousava numa crença
irracional. Não lhes diz, porém, que vivessem num estado de ansiedade e in
certeza quanto à vontade de Deus, ou que alimentassem medo de que a sua
salvação não fosse algo definido e definitivo, segundo imaginam os papistas.
Sumariando, lembremo-nos de que
Paulo está falando a homens que viviam convencidos em razão de uma equivocada
confiança no ser humano, e ele está procurando pôr fim a tal fraqueza, a qual
teve sua origem na dependência humana e não na divina. Pois, após louvar os
colossenses por sua solidez ou 'firmeza na fé' (Cl 2.5), convida-os a
permanecerem firmes, radicados em Cristo, e a serem "edificados nele e
estabelecidos na fé" (Cl 2.7).

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Orgulho
18 maio, 2010
0 Sei em Quem Tenho Crido – João Calvino (2Tm 1.12) -
Eis aqui o único refúgio para
onde todos os crentes devem fugir quando o mundo os condena como perdidos e
infelizes, ou seja, que devem ter por suficiente o fato de poderem contar com a
aprovação divina; pois o que seria deles caso depositassem nos homens sua
confiança? Desse fato devemos inferir que há grande diferença entre a fé e a
mera opinião humana. A fé não depende da autoridade humana, tampouco é uma
confiança hesitante e dúbia em Deus; ela tem de estar associada ao
conhecimento, do contrário não será bastante forte contra os intermináveis
assaltos que Satanás lhe faz. O homem que, como Paulo, possui tal conhecimento
saberá de experiência própria que nossa fé é corretamente chamada "a
vitória que vence o mundo" [1 Jo 5.4], e que Cristo tinha boas razões para
dizer que "as portas do inferno não prevalecerão contra ela" [Mt
16.18]. Tal homem será capaz de repousar tranqüilamente mesmo em meio às
tormentas e tempestades deste mundo, visto que alimenta uma confiança
inabalável de que Deus, que não pode mentir ou enganar, falou, e o que ele
prometeu, certamente o cumprirá. Por outro lado, o homem que não tem essa
verdade indelevelmente gravada em sua mente será sempre movido de um lado a
outro como um arbusto agitado pelo vento. Esta passagem merece nossa detida
atenção, pois ela explica de uma forma muitíssimo excelente o poder da fé,
quando demonstra que, mesmo em casos extremos, devemos glorificar a Deus por
não duvidarmos que ele se manterá verdadeiro e fiel e por aceitarmos sua
Palavra com a mesma certeza como se Deus mesmo surgisse do céu diante de nós. O
homem carente de tal convicção nada entende. É preciso que tenhamos sempre em
mente que Paulo não está a filosofar no escuro, senão que, com a própria
realidade diante dos olhos, está solenemente declarando o grande valor daquela
confiante certeza da vida eterna.
E
estou convicto de que ele é capaz. Ainda que a violência e a
extensão dos perigos que nos cercam amiúde nos lancem em desespero ou, no
mínimo, conturbem nossas mentes, temos de estar armados com a defesa de
sabermos que há no poder de Deus proteção segura para nós. Portanto Deus, ao
ordenar-nos que sejamos confiantes, usa este argumento: 'Aquilo que meu Pai me
deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar" [Jo
10.29]. Com isso ele quer dizer que não corremos perigo algum, já que o Senhor
que nos recebeu em sua proteção é infinitamente capaz de resistir a todos eles.
Nem mesmo Satanás ousaria insinuar diretamente a idéia de que Deus é incapaz de
cumprir o que prometeu, porquanto nossas mentes recuariam diante de tão nefanda
blasfêmia; mas ao desviar nossos olhos e mentes para outras coisas, ele desvia
de nós todo o senso do poder de Deus. Portanto; nossa mente deve estar
completamente limpa, caso queiramos não só experimentar tal poder, mas também
reter a experiência dele em meio às tentações de todo gênero.
Sempre que Paulo fala do poder
de Deus, é preciso entender por essa idéia o seu poder real ou eficaz [energoumenen], como ele mesmo o
qualifica em outro lugar [Cl 1.29]. A fé sempre conecta o poder de Deus com sua
Palavra, a qual não deve ser definida como algo remoto ou à distância, mas,
sim, como algo interior do qual estamos de posse. É por isso que o apóstolo diz
de Abraão em Romanos 4.20: "Não duvidou, por incredulidade, da promessa de
Deus; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus."
Guardar
o meu depósito até àquele dia. É bom observar a forma como
ele descreve a vida eterna: o depósito que lhe fora confiado. Daqui aprendemos
que a nossa salvação está nas mãos de Deus, precisamente como um depositário
que conserva em sua guarda a propriedade que lhe fora confiada para a proteger.
Se a nossa salvação dependesse de nós, ela seria constantemente exposta a todo
tipo de risco; mas, ao ser confiada a um guardião tão capaz, ela fica fora de
todo e qualquer perigo.

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João Calvino
17 maio, 2010
0 Combatendo Consistentemente o Erro - J. Calvino
- Ensina
essas coisas e exorta(1 Tm 6.2). O que o apóstolo tem em mente
é que essas coisas devem ser ensinadas com persistente ênfase, e quer que a
exortação acompanhe o ensino. E como se houvesse dito que esse gênero de ensino
deve ser reiterado diariamente, e que os indivíduos necessitam não só de
instrução, mas também de estímulo e intimação por meio de exortações
freqüentes.
Se
alguém ensina uma doutrina diferente (v. 3). A palavra no grego é um
verbo composto e pode ser traduzido: "ensinar outras coisas". Mas não
há dúvida sobre o seu significado; o apóstolo está condenando todos os que não
aceitam esse tipo de ensino, mesmo que não se oponham aberta e irrestritamente
à sã doutrina. É possível não professar um erro ímpio e público, e no entanto
corromper a doutrina da piedade através de sofismas ostentosos. Porque, quando
não há progresso ou edificação procedente de algum ensino, o afastamento da
instituição de Cristo já está concretizado. Mas ainda que Paulo não esteja
falando dos confessos originadores de doutrinas ímpias, e, sim, acerca de
mestres fúteis e destituídos de religião, que do egoísmo ou avareza deformam a
simples e genuína doutrina da piedade, não obstante percebemos quão aguda e
veementemente ele os ataca. E não é de estranhar, pois é quase impossível
exagerar o volume de prejuízo causado pela pregação hipócrita, cujo único alvo
é a ostentação e o espetáculo vazio de conteúdo. Torna-se, porém, ainda mais
evidente, à luz do que segue, a quem precisamente ele está responsabilizando
aqui. Pois a próxima cláusula - e não consente com as sãs palavras - é
tencionada como uma descrição de homens desse tipo, desviados por tola
curiosidade, comumente desprezam tudo o que é benéfico e sólido e se entregam a
excentricidades extravagantes, à semelhança de cavalos obstinados. E o que é
isso senão a rejeição das sãs palavras de Cristo? São chamadas sãs em virtude
de seu efeito de conferir-nos solidez, ou porque são qualificadas para promover
a solidez.
E com a doutrina da piedade tem
o mesmo sentido. Pois ela só será consistente com a piedade se nos estabelecer
no temor e no culto divino, se edificar nossa fé, se nos exercitar na paciência
e na humildade e em todos os deveres do amor. Portanto, aquele que não tenta
ensinar com o intuito de beneficiar, não pode ensinar corretamente; por mais
que faça boa apresentação, a doutrinação não será sã, a menos que cuide para
que seja proveitosa a seus ouvintes. Paulo acusa a esses infrutíferos mestres,
primeiro de insensatez e de fútil orgulho. Em segundo lugar, visto que o melhor
castigo para os interesseiros é condenar todas as coisas nas quais, em sua
ignorância, se deleitam, o apóstolo diz que eles nada sabem, embora estejam
inchados com argumentos inúmeros e sutis. Não têm nada sólido senão só vácuo.
Ao mesmo tempo, o apóstolo adverte a todos os piedosos a não se permitirem que
se desviem por esse gênero de exibição fútil, mas que, ao contrário, permaneçam
firmes na simplicidade do evangelho.
Apaixonado
por questionamentos (v.4). Eis uma comparação indireta entre a
solidez da doutrina de Cristo e essa 'paixão'. Pois quando esses questionadores
sutis tiverem se cansado com seu enfadonho assunto, que resultado terão eles de
revelar a todos os seus esforços, a não ser que o seu mal se agrave
crescentemente? Não só se desgastam por nada, mas sua insensata curiosidade
provoca essa 'paixão'. E daqui segue-se que estão muito longe de beneficiar
razoavelmente com o seu ensino, como devem proceder os discípulos de Cristo.
Paulo tem boas razões para
mencionar juntos, questiona-mentos e contendas de palavras, porque, pelo
primeiro termo, ele não quer dizer o tipo de questão que nasce de um moderado e
sóbrio desejo de aprender ou que contribui para aclarar explanações de pontos
úteis; mas, ao contrário, o tipo de questão que hoje é discutido nas escolas da
Sorbone, com o intuito de exibir habilidade intelectual. Ali, uma questão leva
a outra, porque não há fim para elas, quando todos se precipitam em sua
vaidade, procurando saber mais do que deveriam, e isso gera infindáveis
contendas. Assim como as densas nuvens, no tempo de calor, não se dissipam sem
trovoada, assim também essas escabrosas questões inevitavelmente prorrompem em
discussões sem fim.
Ele dá o nome de [logomaquias— questões de palavras] às
disputas contenciosas em torno de palavras, quando devia ser em torno do que é
real, as quais são, como comumente se diz, sem conteúdo ou fundamento. Caso
alguém investigue atentamente o tipo de questões que ardentemente preocupam aos
sofismas, descobrirá que dali nada nasce que seja real, senão o que é forjado
do nada. Em suma, o propósito de Paulo era condenar todas as questões que nos
envolvem em acirradas disputas sobre assuntos dos quais nada resulta.
Dos quais procede inveja. Ele
mostra, à luz de seus resultados, como deveríamos evitar a curiosidade
ambiciosa; pois a ambição é a mãe da inveja. E sempre que a inveja estiver no
comando, ali também surgirá violência, confusões, contendas e os demais males
que Paulo enumera aqui.
O
apóstolo acrescenta que tais coisas procedem de homens de mente corrompida e
privados da verdade (v. 5). E cristalinamente óbvio que aqui ele está
censurando os sofistas que não se preocupavam com a edificação [da Igreja] e
convertiam a Palavra de Deus em trivialidade e numa fonte de controvérsias
engenhosas. Se o apóstolo apenas realçasse que, com isso, a doutrina da
salvação ficaria destituída de sua eficácia, tal coisa, por si só, seria uma
intolerável profanação; mas sua reprovação é muito mais pesada e grave, pois
ele mostra os males perniciosos e as pragas nocivas resultantes disso. Desta
passagem devemos aprender a detestar a sofistica como algo inconcebivelmente
nocivo à Igreja de Deus.
Supondo que a piedade é fonte
de lucro. O significado consiste em que a piedade é equivalente a lucro ou é
uma forma de produzir lucro, porque, para esses homens, todo o cristianismo
deve ser aquilatado pelos lucros que ele gera. E como se os oráculos do
Espírito Santo houvessem sido transmitidos não com outro propósito, senão de
servir à sua avareza; negociam com eles como.se fossem mercadoria à venda.
Paulo proíbe aos servos de Cristo qualquer gênero de transação com tais homens.
Ele não só proíbe a Timóteo de imitá-los, mas lhe diz que os evitasse como se fossem
peste maligna. Ainda que não se opusessem abertamente ao evangelho, e o
confessassem, não obstante a companhia deles era infecciosa. Além disso, se a
multidão nos visse com familiaridade com tais pessoas, haveria o risco de que
usassem nossa amizade para insinuar-nos em seu favor. Portanto, devemos
empenhar-nos ardentemente por levar as pessoas a entenderem que somos
completamente diferentes deles, e que nada temos em comum com eles.

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14 maio, 2010
0 Loucos para o Mundo – João Calvino
Porque a
sabedoria deste mundo (1Co 3.19-21). Este é um argumento do lado oposto. A confirmação de um significa a
destruição do outro. Portanto, visto que a sabedoria deste mundo é loucura aos olhos de Deus, segue-se que a única maneira de podermos
ser sábios aos olhos de Deus é tornarmo-nos
loucos aos olhos do mundo. Já expusemos o que Paulo quis dizer com a expressão
"sabedoria deste mundo": porque a percepção natural é um dom de Deus.
As artes que os homens naturalmente procuram cultivar, e todas
as disciplinas pelas quais a sabedoria é
adquirida, são também dons de Deus. Porém, tudo isso tem seus limites
definidos, porque não podem penetrar no reino celestial de Deus.
Conseqüentemente, todas elas devem ser
servas, não senhoras. Além disso, eles devem ser olhados como inúteis e
indignos até que estejam completamente
subordinados à Palavra e ao Espírito de Deus. Mas se porventura se levantarem contra Cristo, que sejam
considerados uma injuriosa peste. E
se se mantêm acreditando que são capazes de algo, por si mesmos, então que sejam considerados como o pior
dos obstáculos.
Portanto, a
sabedoria deste mundo é, segundo Paulo, aquilo que energicamente assume o senhorio de si mesmo e
se recusa a deixar-se dirigir pela
Palavra de Deus, e tampouco se deixa humilhar para que seja completamente sujeito a Deus. Portanto, até que suceda
que uma pessoa reconheça que nada sabe exceto o que aprendera de Deus e, tendo rejeitado seu próprio entendimento, se ponha sob a direção
exclusiva de Cristo, tal pessoa é sábia pelos padrões do mundo, no entanto é
tola aos olhos de Deus.
Pois está escrito: Ele apanha os sábios em sua própria astúcia. Paulo
apoia o que acaba de afirmar em dois textos da Escritura.
O primeiro é tomado de Jó 5.13. Aí a sabedoria de Deus é exaltada porque em sua presença nenhuma sabedoria
terrena pode se estabelecer. Não há dúvida de que nesse contexto o profeta está
a falar sobre o astuto e o insidioso. Porém, visto que a sabedoria do homem é sempre da mesma qualidade quando se
acha divorciada de Deus, Paulo
corretamente a adapta para significar que, embora os homens adquiram muita sabedoria por seus próprios esforços, tal
coisa não tem o menor valor aos olhos de Deus. O segundo é do Salmo 94.11, onde, após atribuir a Deus a
função e a autoridade para ensinar a todos, Davi acrescenta que "O
Senhor conhece os pensamentos do homem, que
são pensamentos vãos". Portanto, não importa quão altamente sejam
valorizados por nós, segundo o juízo
divino são fúteis. Esta é uma excelente passagem para realçar a confiança carnal, pois aqui Deus declara de
cima que tudo o que a mente humana
concebe e propõe é simples nulidade.
Por isso, ninguém se glorie nos homens. Visto que nada é mais indigno do
que o homem, quão pouca segurança há em depender-se
de uma sombra inconsistente! Daí, ele faz uma válida inferência da
oração precedente ao dizer que não se deve gloriar nos homens visto que ali vemos como o Senhor despe a todos os homens das bases para a ostentação. Contudo, esta
conclusão depende de tudo o que
ensinou no argumento precedente, como logo veremos. Pois visto que pertencemos exclusivamente a Cristo, Paulo está plenamente certo em ensinar-nos que qualquer
preeminência que seja atribuída ao
homem, que envolva o detrimento da glória de Cristo, é sacrílega.

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