30 abril, 2010
0 O Chamado ao Testemunho - (Sermão) - João Calvino
“Portanto,
não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, que sou
prisioneiro seu; antes, participa das aflições do evangelho, segundo o poder de
Deus,”
"que
nos salvou e chamou com uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas
segundo o seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes
dos tempos dos séculos,"
(II
Timóteo 1:8-9, ARC)
EMBORA Deus mostre Sua glória e
majestade no evangelho, a ingratidão dos homens é tamanha, que temos que ser
exortados a não nos envergonharmos desse evangelho. E por quê? Porque Deus
requer a adoração de todas as criaturas. Ainda assim, a maior parte [delas] se
rebela contra Ele, e o despreza, e desafia a doutrina mediante a qual Ele se
faz conhecido [para ser] adorado. Embora os homens sejam tão perversos a ponto
de se voltarem contra seu Criador, lembremo-nos, não obstante, daquilo que se
nos é ensinado nesta porção [da Escritura]: a não nos envergonharmos do
evangelho, visto ser ele o testemunho de Deus.
Se o evangelho não é pregado,
Jesus Cristo é, tal como foi, enterrado. Portanto, coloquemo-nos como
testemunhas, honrando-O, quando virmos todo o mundo tão distante do caminho, e
permaneçamos firmes em toda a doutrina. S. Paulo aqui expõe toda sua pessoa
diante de nós. Não que ele quisesse em particular ser aprovado, mas porque
freqüentemente nos vemos em dificuldade se nos dissociarmos dos servos de Deus.
Quando há um ministro da Palavra
[passando por] problemas,
[sendo] incomodado e perseguido, [é comum que] o abandonemos,
pensando ser ele apenas um homem mortal Contudo, ao fazê-lo, ofendemos a Deus,
uma vez que esse homem que sofre tem a marca do evangelho e, assim, a causa de
Deus é atraiçoada. Portanto, S. Paulo diz a Timóteo: "não se envergonhe de
mim" [v.8].
A mente de Timóteo talvez
estivesse abalada. Assim, S. Paulo lhe diz: "ainda que o mundo me
despreze, ainda que zombe de mim e me odeie, você não deve ser movido por essas
coisas, porque sou o prisioneiro de Jesus Cristo. Deixe que o mundo fale mal de
mim, isso não me ofende. Deus concede na minha causa, pois esta é também a Sua
causa. Sofro não por ter feito o mal, tendo sempre Sua verdade do meu lado.
Portanto, a causa da minha perseguição é [o fato de] eu ter mantido a Palavra
de Deus, e [de] continuar a mantê-la. Você não deveria se orientar pelo
julgamento do mundo, uma vez que os homens são levados por inclinações
malignas. Já lhe basta [saber que] eu sou como um [preso no lugar] do próprio
Filho de Deus, que Ele engrandece a minha pessoa, que mesmo que [tudo] isso
seja reprovável para o mundo, não cessa de ser honrado diante de Deus e de Seus
santos anjos".
Não diminuamos Jesus Cristo no
testemunho que Lhe devemos, ao calarmos nossas bocas no momento em que se deve
é manter Sua honra e a autoridade de Seu evangelho. E, ainda, quando virmos
nossos irmãos em aflição pela causa de Deus, juntemo-nos a eles, e
assistamo-los em sua aflição. Não nos turbemos pelas tempestades que surgem,
mas permaneçamos constantes em nosso propósito, levantando-nos como testemunhas
para o Filho de Deus, vendo que Ele é tão gracioso a ponto de nos usar em tão
boa causa. Percebamos com clareza que os homens sofrem ou por causa de seus
próprios pecados ou por causa da verdade de Deus. Quando vemos alguém sob
opressão, não podemos desprezá-lo, [sob risco de] injuriarmos a Deus: devemos,
então, nos certificar da causa desse sofrimento. Se têm andado em boa
consciência e, [ainda assim], são acusados; se são atormentados porque servem a
Deus, isso é suficiente para remover o que quer que o mundo caído possa dizer
contra eles. Portanto, S. Paulo acrescenta "participa das aflições do
evangelho" [v.8].
Não há pessoa alguma que não
gostaria de escapar de aflições. Isso é de acordo com a natureza humana. E,
embora confessemos, sem dissimular, que é uma graça ímpar que Deus nos concede
ao permitir aos homens que sofram aflições mantendo Sua causa, não há um sequer
de nós que não gostaria de se livrar de perseguição. Isso tudo porque não
observamos a lição de S. Paulo, que diz: "o evangelho traz
problemas". Jesus Cristo foi Ele mesmo crucificado, e Sua doutrina vem
[junta] com muitos sofrimentos. Ele poderia, se quisesse,
determinar que Sua
doutrina fosse recebida
sem qualquer oposição, mas a
Escritura deve ser cumprida: “Domina no meio dos teus inimigos" (Salmo 110
[v.2]).
Devemos ir até Ele sob esta
condição: estar dispostos a sofrer oposição, porque os ímpios se levantam
contra Deus quando Ele os chama para Si. Portanto, é impossível a nós ter o
evangelho sem [ter também] aflição. Devemos nos exercitar. Devemos lutar sob [o
comando do] Nosso Senhor Jesus Cristo. Não é que aquele que deseja se ver livre
da cruz de Cristo renuncia à sua própria salvação? Pois é somente por isso que
somos comprados pelo sacrifício do Filho de Deus. Dessa forma é que somos
feitos tais como Ele, sendo transformados conforme Sua imagem.
Não devemos nos envergonhar de
nossos irmãos. Quando ouvimos denúncias malignas contra eles, e os vemos
desprezados pelo mundo, estejamos sempre com eles, e esforcemo-nos para
fortalecê-los, pois o evangelho não pode ser [espalhado] sem aflição, tal como
eu disse. Agrada a Deus que homens sejam dessa forma separados, mas Ele nos
chama à unidade na fé, e a doutrina do evangelho é a mensagem da reconciliação.
Porém, os fiéis são buscados por meio de Seu Espírito Santo (tal como veremos
adiante de modo mais específico), e os incrédulos permanecem em sua dureza [de
coração]. Assim, tal como quando se acende o fogo, e tal como quando o trovão
se propaga no ar, há sempre tensão quando o evangelho é pregado.
Ora, se o evangelho traz
aflição, e se é do feitio de Jesus Cristo que se realize nos membros [de Seu
corpo, a igreja] aquilo que Ele sofreu em Sua pessoa, e que [os membros] sejam
diariamente crucificados, será que seria correto que nos retirássemos de tal
situação? Vendo que toda a esperança da salvação se encontra no evangelho,
devemos descansar nisso e ter em mente o que S. Paulo diz, [a saber, que,] para
aprendermos, devemos assistir nossos irmãos quando estiverem em apuros e quando
forem perseguidos pelos ímpios. Devemos escolher ser companheiros [dos nossos
irmãos] e sofrer as reprimendas e escárnios do mundo, ao invés de sermos
honrados com boa reputação ao darmos as costas àqueles que sofrem por essa
causa, que é nossa tanto quanto deles.
Inclinamo-nos a ser fracos e
pensamos que seremos devorados por perseguições, assim que nossos inimigos nos
assaltam. Mas S. Paulo observa que não nos faltará o auxílio e o socorro do nosso
Deus. Ele nos arma e nos dá um poder invencível para que permaneçamos firmes e
estimulados. Por essa razão S. Paulo acrescenta: "segundo o poder de
Deus" [v.8]. Porém, tal como dissemos, qualquer um gostaria de ter algum
disfarce ou atenuador para evitar que perseguição recaia sobre si. "Se
Deus me der graça, sofrerei com alegria por Seu nome, na certeza de que é a
maior bênção que eu poderia receber". Qualquer um confessaria isso. Mas
também acrescentariam: "contudo, somos frágeis e seremos rapidamente
vencidos pela crueldade de nossos inimigos". S. Paulo, entretanto, remove
essa desculpa ao dizer: “Deus há de nos fortalecer" e "não podemos
olhar para nossa própria força". Pois é certo que se nunca entrarmos em
conflito com nossos inimigos teremos medo até mesmo de nossas próprias sombras.
Conscientes dessa fraqueza, vamos à solução. Devemos considerar o quão difícil
é para nós aturar os nossos inimigos. Portanto, humilhemo-nos perante Deus,
oremos a Ele para que estenda Sua mão e nos segure em todas as nossas aflições.
Se esta doutrina fosse bem gravada em nossos corações, estaríamos mais
preparados do que estamos para sofrer.
Mas somos inclinados a nos
esquecermos. Sim, tampamos nossos ouvidos e fechamos nossos olhos quando
ouvimos isso tudo ser dito. Fingimos que desejamos que Deus nos fortaleça, mas
não podemos enxergar aquele poder mencionado por S. Paulo. Inclinamo-nos a
pensar que nada temos a ver com isso, embora o Senhor nos tenha mostrado que
Seu poder sempre nos amparará. Portanto, não permitamos que nossa fragilidade
nos impulsione a abandonarmos a cruz e a [fugir da] perseguição, visto que Deus
nos recebeu em Suas mãos e prometeu suprir-nos as necessidades. S. Paulo aqui
acrescenta uma lição que nos envergonha estrondosamente, caso não almejemos
glorificar a Jesus Cristo sofrendo perseguição. Ele diz: "Deus nos salvou
e chamou com uma santa vocação" [v.9].
Oh! Deus nos tirou do fogo do
inferno! Estávamos irremediavelmente condenados, mas Ele nos trouxe salvação e
nos chamou a participarmos dela. Portanto, visto que Deus Se mostrou tão
liberal, voltarmo-nos contra Ele não é uma malícia vergonhosa? Atentemos para a
acusação de S. Paulo contra os inconstantes, que não querem lutar contra os
ataques feitos contra eles por causa do evangelho. Sem dúvida que [o apóstolo]
pensou em consolar os fiéis do futuro e que, por isso, mostrou o que Deus já
havia feito por eles.
Quando Deus nos dá qualquer
expressão de Sua bondade [que seja], é com a finalidade de que esperemos que o
mesmo aconteça de Sua parte novamente, e de que aguardemos até que Ele cumpra o
que começou. Portanto, se Deus já nos salvou e nos chamou com santa vocação,
acaso nos deixaria pelo meio do caminho? Visto que Ele nos mostrou a nossa
salvação e nos deu Seu evangelho mediante o qual Ele nos chama para Seu reino e
nos abre as portas; visto que Ele já cumpriu tudo isso, pensaremos que Ele nos
abandonará aqui, zombando de nós, e nos negando Sua graça, ou tomando-a nula?
Não, não! Pelo contrário, devemos esperar que Ele trará Sua obra à perfeita
completude.
Portanto, continuemos com
bravura, pois Deus já mostrou Seu poder em nosso favor. Não duvidemos que Ele
continuará a fazê-lo, e que haveremos de ter uma vitória perfeita sobre Satanás
e sobre nossos inimigos, e que Deus, o Pai, já deu todo o poder nas mãos de
Jesus Cristo, que é nosso cabeça e capitão, para sermos co-participantes disso.
Assim, percebemos a intenção de S. Paulo. Deus testemunhou, e sabemo-lo por
experiência, que Ele nunca falhará quando vier a necessidade. E por quê? Porque
Ele já nos salvou, por ter-nos chamado ao evangelho e [por ter-nos] remido dos
[nossos] pecados. Ele já nos chamou com uma santa vocação, o que quer dizer que
Ele nos escolheu para Si, do meio de toda a confusão da humanidade.
Uma vez que o Senhor nos tomou
para Si, acaso não nos segurará e nos guiará até o fim? Esta é uma confirmação
certa do poder de Deus: que sempre O encontramos pronto a nos socorrer. Por
isso, colocamos nossa confiança nEle, sabendo que já sentimos Seu poder. Para
tirarmos proveito desse ensino, saibamos, antes de tudo, que, se Deus nos levou
ao conhecimento da Sua verdade, [isso] é tal como se Ele já nos tivesse
mostrado que pertencemos a Sua herança celeste e que somos dEle, do Seu
rebanho. Se estivermos persuadidos disso e firmes daí em diante, seguiremos
sempre adiante na causa, sabendo que estamos sob Sua proteção. Ele tem força
suficiente que supera todos os nossos inimigos, e que faz certa a nossa
salvação.
Não devemos temer em virtude de
nossa fragilidade, pois Deus prometeu nos assistir. E nisso que devemos pensar
para que recebamos e apliquemos aquilo que nos é dito. O Senhor levará a nossa
salvação até um fim! Ele nos ajudará no meio das perseguições e nos habilitará
a superá-las. Quando nos convencermos de vez dessas coisas, mio será necessário
muito poder retórico para nos fortalecer contra tentações. Triunfaremos sobre
todos os nossos inimigos, embora sejamos vistos pelo mundo como [se fôssemos
por ele] pisoteados e veementemente superados. Porém, devemos atentar para esta
declaração que S. Paulo acrescenta acerca da salvação mencionada por ele e da
santa vocação. Ele diz: "não segundo as nossas obras, mas segundo o seu
próprio propósito e graça" [v.9].
Pois Ele não olhou para nossas
obras ou [para nossa] dignidade quando nos chamou para a salvação. Ele o fez
por mera graça. Portanto seremos menos desculpáveis ao desobedecermos a Suas
ordenanças, percebendo que não somente fomos comprados com o sangue do Nosso
Senhor Jesus Cristo, mas também que Ele cuidou de nossa salvação antes mesmo da
fundação do mundo. Observemos, aqui, que S. Paulo condena nossa ingratidão, por
sermos tão infiéis a Deus a ponto de não testemunharmos acerca do Seu
evangelho, lembrando que somos chamados por Ele para isso. E, para expressar
melhor esse propósito, o apóstolo acrescenta que isso "nos foi dado em
Cristo Jesus, antes dos tempos dos séculos", antes que o mundo tivesse
rumo ou começo: foi revelado na vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quando esse grande Salvador fez
Sua aparição, a graça — que antes era oculta e que não poderia ter sido
alcançada por conhecimento humano — foi esclarecida e manifestada. Mas como? O
Filho de Deus destruiu a morte e também trouxe a vida eterna! E nem precisamos
ir muito adiante [no conjeturar] para descobrirmos isso porque o evangelho nos
leva a isso. Quando Deus nos envia essa mensagem de salvação, só temos que
receber a herança que Ele nos prometeu. Devemos abrir nossas bocas para que Ele
as encha. Devemos abrir nossos corações e deixar entrar esse testemunho do evangelho,
e a imortalidade do reino dos céus habitará em nós. Embora sejamos servos
miseráveis e fracos, e nada tenhamos, a não ser corrupção e podridão em nós,
ainda assim lançamos mão dessa imortalidade e temos um testemunho certeiro
dela, assim podendo aceitar essa graça que nos é oferecida no evangelho.
Para que compreendamos melhor o
que se contém aqui, repare-se que esta palavra propósito significa o decreto
eterno de Deus, que não possui quaisquer causas. Porque quando falamos do
conselho de Deus não precisamos discutir sobre o que O compeliu, como se
pudéssemos imaginar motivos e dizer "este é o motivo pelo qual Deus
determinou esse fato e é por causa disso que Ele assim o fez". Deus nos
dará tamanha sobriedade, que Sua mera vontade nos bastará para todo motivo.
Quando se diz [que] "Deus assim decretou", embora nossa vista esteja
embaçada, a questão nos pareça estranha e não vejamos qualquer razão para assim
ser, ainda não poderemos achar culpa. É-nos sábio cumprir tudo o que Deus
ordena e nunca perguntar por que.
Mas, visto que os homens têm
mentes inquietas e que são muito dados à curiosidade, S. Paulo traz até nós o
propósito de Deus e nos diz claramente que devemos considerar tão profundo e
impenetrável o conhecimento sobre quem O moveu. Ele foi movido somente por Sua
justa vontade, que é o padrão de toda justiça. Portanto, nos é informado aqui
que nossa salvação não depende de nosso merecimento. Deus nunca examinou quem
éramos, nem do que éramos dignos, quando nos escolheu para Si. Mas tinha o Seu
propósito, isto é, Ele não procurou causa alguma de nossa salvação em nós
mesmos, e sim, nEle. S. Paulo mostra evidentemente que esta palavra propósito
significa tal decreto. Mas, uma vez que os homens não podem, devido ao orgulho
que neles habita, se abster de imaginar algum valor em si mesmos, eles pensam
que Deus está sob a obrigação de buscá-los. Mas S. Paulo diz claramente:
"propósito e graça" [v.9]. E como se tivesse dito: " livre
propósito".
Isso, portanto, supera todas as
nossas obras. Que não sejamos tão ingênuos e teimosos a ponto de pensar que
Deus nos escolheu porque havia algo em nós que valesse a pena [salvar]. Não,
não. Pelo contrário, devemos reconhecer que Deus nunca foi além de Si mesmo
quando nos escolheu para a salvação. Ele se contentou, por mera graça e
infinita misericórdia, embora não merecêssemos, a olhar para nossa miséria e a
nos socorrer porque viu que em nós nada havia, senão condenação. Para
esclarecer ainda mais, S. Paulo diz que essa graça nos foi dada antes da
fundação do mundo.
Percebemos com isso o quão
insensatos são os homens quando se vangloriam de achar que são a causa de sua
própria salvação, evitando a bondade de Deus, ou colocando-se assim diante
dEle. Onde, então, reside nossa salvação? Não seria sobre a eleição e a escolha
que existe desde a eternidade? Deus nos escolheu antes que existíssemos. Que
pudemos fazer, então? Fomos tomados aptos e bem dispostos para vir a Deus. Ora,
vemos que nossa salvação não começa depois que tivermos conhecimento,
discernimento e bons desejos, mas que reside no decreto eterno de Deus, que
[já] existia antes que qualquer parte do mundo tivesse sido feita.
Como aplicar [isso], então?
Temos algum meio para nos exaltarmos? Podemos dar a Deus pretexto para nos
chamar e nos separar do resto do mundo? Não estamos, então, grandemente
equivocados quando imaginamos que temos algum valor próprio e exaltamos nossos
méritos para obscurecer a graça de Deus, tentando por nós mesmos ter acesso a
Ele? Devemos observar com atenção o motivo pelo qual S. Paulo menciona a
eleição de Deus dizendo que a "graça [...] nos foi dada em Cristo Jesus,
antes dos tempos dos séculos" [v.9]. Aqueles que pretendem abolir a
doutrina da eleição de Deus destroem tanto quanto for possível a salvação do
mundo.
Esse é o instrumento mais
poderoso utilizado pelo diabo para desfigurar a virtude do sangue de Nosso
Senhor Jesus Cristo, para negar e destruir o evangelho, sim, e para tirar da
memória humana a benignidade de Deus. O diabo não tem melhores agentes do que aqueles
que lutam contra a predestinação, ou que não podem em seu ódio tolerar que ela
seja mencionada ou pregada da forma como deveria. Se detestamos os papistas
(como, de fato, devem ser detestados), porque têm profanado a Sagrada Escritura
e têm estragado e depravado a verdade do evangelho e o culto a Deus ao
contaminar todo o mundo com superstição e idolatria, devemos detestar ainda
mais aqueles que buscam a todo custo anular a [doutrina da] eleição de Deus de
formas diretas ou sutis, ao impedir que se fale dela clara e abertamente e que
ela seja pregada tal como deveria ser.
Em que mais consiste a salvação
dos fiéis, a não ser na eleição livre de Deus? Não teremos pessoa alguma
pregando que Deus escolheu os Seus por mera bondade, sem [observar] qualquer
critério [neles]? Não admitiremos que este é um mistério tamanho que não pode
ser apreendido, mostrado e declarado a nós a não ser na medida em que Deus o
deseje revelar? Se não admitirmos isso, juntamo-nos a Satanás em conspiração,
como se Jesus Cristo tivesse sofrido em vão e [como se] a paixão que ele sofreu
não tivesse proveito algum ao mundo. Aqui podemos fazer a observação de que não
há como pregar um evangelho que seja profano, ou a doutrina de Maomé, de que
não há igreja ou Cristianismo, se a eleição de Deus for abolida.
O Espírito Santo que fala aqui
será tido por mentiroso se essa doutrina não for recebida. Portanto, lutemos
constantemente, porque ela é o sustentáculo de nossa salvação. Como
construiremos e manteremos o edifício se o alicerce for destruído? S. Paulo nos
mostra aqui o tipo de garra com que temos que lutar e, também, como chegaremos
a essa herança que nos foi comprada de forma tão especial Ele nos mostra como
tomaremos posse da glória de Deus e [como] terminaremos esse edifício e a fé.
Meus amigos, devemos estar firmados na graça que nos foi dada, não hoje ou
ontem, mas antes da fundação do mundo.
E verdade que Deus nos chama
mesmo [nos tempos de] hoje, mas Sua eleição é bem anterior. Além disso, Deus
nos escolheu sem levar em consideração as nossas obras, visto que nada
poderíamos ter feito anteriormente. Somos, então, devedores a Ele por tudo,
pois Ele nos tirou do fundo do poço da destruição, onde estávamos jogados, e
nos deu toda a esperança da recuperação. Portanto, há bons motivos para que nos
submetamos inteiramente a ele e confiemos em Sua benignidade, sendo totalmente
tomados por ela. Depositemos nossa firmeza nesse alicerce, tal como eu disse
antes, caso contrário, veremos nossa salvação perecer e desaparecer. Essa
doutrina nos será de grande valia se pudermos aplicá-la primeiramente em nós
mesmos.
Aqueles que não nos permitem
falar acerca da eleição de Deus dirão "não é necessário". Tais
homens, todavia, jamais provaram da bondade de Deus, nem podem saber sobre o
que há de ocorrer acerca de Nosso Senhor Jesus Cristo. Se sabemos que somos
salvos porque aprouve a Deus nos escolher antes da fundação do mundo, como
poderemos identificar aquilo que S. Paulo nos diz e aprender que devemos nos
entregar totalmente a Deus, dispondo-nos à Sua vontade, e viver e morrer ao Seu
serviço? Como poderemos engrandecer Seu nome? Como podemos confessar que nossa
salvação vem dEle somente, que Ele é o seu ponto inicial e que nisso não O
ajudamos em nada? Podemos dizê-lo com nossas bocas, mas, a menos que
acreditemos nisso, tal como nos é ordenado, [tudo] será sempre hipocrisia.
Portanto, aprendamos que a
doutrina da eleição de Deus, segundo a qual Ele nos predestinou antes que o
mundo começasse, deve ser pregada abertamente e por completo, ainda que todo o
mundo se coloque contrário a ela. E não somente isso, mas devemos saber que é
uma doutrina de grande proveito para nós, porque não poderemos experimentar
[plenamente] a bondade infinita de Deus sem apreendê-la. A menos que esse ponto
seja bem esclarecido, qual seja, de que Ele nos escolheu antes de nascermos, e
antes que pudéssemos impedi-Lo, a misericórdia de Deus será sempre encoberta.
As pessoas freqüentemente dirão
que fomos comprados pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e que não
merecemos que Deus demonstrasse tamanha misericórdia. Elas dirão, da mesma
forma: "quem tem parte e porção dessa redenção que Deus prove na pessoa de
Seu Filho? Aqueles que querem, que buscam a Deus, que se submetem a Ele.
Aqueles que têm boas intenções, que não são rudes, que são bonzinhos ou que têm
boa devoção". Quando as pessoas fazem tamanha confusão e passam a pensar
que são chamadas para Deus e para Sua graça por causa de algo que se encontra
nelas mesmas, de maneira a levarem algo que as recomende ao favor de Deus a fim
de obter salvação, então a graça de Deus é ofuscada e despedaçada.
Isso é um sacrilégio que não
deve ser tolerado. Por causa disso, eu disse que a bondade de Deus nunca será
plenamente conhecida até que essa eleição seja colocada diante de nós, e que
sejamos ensinados que somos vocacionados nestes dias porque aprouve a Deus
estender sua misericórdia a nós antes mesmo que nascêssemos. Essa doutrina deve
ser explicada de forma mais detalhada, mas como o tempo não permite no momento,
debruçaremo-nos sobre ela mais tarde hoje.
Fonte: Coletânea de sermões de
Calvino publicada pela Wm.B. Eerdmans em 1949 nos Estados Unidos.
Tradução: Lucas Grassi Freire

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Sofrimento
29 abril, 2010
0 Loucos por Amor - João Calvino
- Somos
loucos por amor a Cristo (1Co 4.10,11). Este contraste vem repassado
de ironia e observações incisivas, pois era manifestamente intolerável, e
deveras absurdo, que os coríntios fossem felizes em tudo e usufruíssem de fama
segundo os padrões humanos, e ao mesmo tempo assistissem seu mestre e pai
sofrer misérias provocadas pelos infortúnios externos e problemas de todo gênero.
Há quem pense que Paulo se humilha desta maneira para que pudesse de alguma
forma confiar na seriedade dos coríntios e ter as coisas que, como admite, ele
mesmo não possuía. Aqueles que defendem este ponto de vista podem ser
facilmente refutados à luz da pequena cláusula que vem imediatamente em
seguida.
Portanto, ele está sendo
irônico em admitir que os coríntios são sábios em Cristo, fortes e ilustres. É
como se dissesse: "Vós desejais
manter a reputação de sábios junto ao evangelho, ao passo que eu só fui capaz
de vos pregar Cristo ao tornar-me louco aos olhos do mundo. Ora, quando me
disponho em ser um louco ou gozar de tal reputação, pergunto se é justo que
desejeis ser considerados como sábios. Dificilmente teríeis condição de afirmar
que estas duas coisas vão bem juntas, a saber: que eu, que tenho sido vosso
mestre, não passo de um louco por amor a Cristo, enquanto que vós permaneceis
sábios." Segue-se que ser sábio em Cristo não alcança boa conotação
aqui, porque, na verdade, eles queriam associar coisas que são completamente
dissemelhantes.
O raciocínio nas frases que se seguem
é similar: "Vós sois fortes" diz ele, "e famosos"; em
outras palavras, "vos gloriais nas riquezas e recursos do mundo, e não
podeis tolerar a ignomínia da Cruz. Entrementes, é razoável que eu seja obscuro
e desprezível, e sujeito a muitas enfermidades na busca dos vossos
interesses?" Mas esta queixa não leva nenhum respaldo da dignidade,
porquanto, na verdade, ele não é um indivíduo fraco e desprezível entre eles.
Resumindo, ele moteja da vaidade deles, porque as coisas viram de ponta-cabeça
quando se esperava que os filhos e alunos se tornassem famosos e renomados,
enquanto os pais permaneciam na obscuridade, e igualmente expostos a todos os
insultos do mundo.
Até à presente hora. Aqui o
apóstolo pinta um quadro vivido de suas circunstâncias pessoais, para que os
coríntios aprendessem de seu exemplo a desistir de seu orgulho e a submeter-se
de coração, e a abraçar a Cruz de Cristo juntamente com ele. Ele revela
consumada habilidade, pois, ao lembrá-los das coisas que o transformaram num
ser abjeto, ele estabelece sua ímpar fidelidade e sua infatigável solicitude em
disseminar o evangelho; e, por outro lado, tacitamente censura a seus rivais
que, sem apresentar quaisquer evidências, esperavam, não obstante, usufruir de
um lugar de preeminência.

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Orgulho
28 abril, 2010
0 Edificando em Falso Fundamento - João Calvino
Porque
ninguém pode lançar outro fundamento (1Co 3. 11,12). Esta
sentença consiste de duas partes, a saber:
(1) que Cristo é o único
fundamento da Igreja; e
(2) que os coríntios haviam
sido apropriadamente fundados sobre Cristo através da pregação de Paulo.
Por isso, era necessário que
fossem reconduzidos somente a Cristo, pois seus ouvidos se cocavam freneticamente por novidades. Era uma
questão de grande importância que Paulo fosse conhecido como o principal e (se
assim posso afirmar) fundamental arquiteto, de cujo ensino os coríntios não
poderiam afastar-se, sob a pena de renunciar ao próprio Cristo. Resumindo: a
Igreja deve estar total e definitivamente fundada exclusivamente sobre Cristo;
e Paulo desempenhava seu papel, a este respeito, entre os coríntios tão fielmente
que seu ministério não deixava nada a desejar.
Segue-se que, quem quer que
viesse após ele não poderia servir ao Senhor conscienciosamente, ou ser ouvido
como ministro de Cristo de algum outro modo além de esforçar-se em tornar o seu
ensino como o dele, e manter o fundamento que ele lançara.
Daqui podemos chegar a certa
conclusão sobre aqueles que, quando seguem os genuínos ministros, não se
preocupam em adaptar-se ao seu doutrinamento e seguir de perto um bom princípio
a fim de fazer perfeitamente claro que não se ocupavam com novidades. Podemos
concluir, pois, que eles [coríntios] não estavam trabalhando fielmente para
edificar a Igreja, senão que eram seus demolidores. Pois o que é mais
destrutivo do que confundir os crentes bem fundamentados na sã doutrina com um
novo gênero de doutrinamento, de modo que não sabem com certeza onde estão ou
para onde vão? Por outro lado, a doutrina fundamental, que não pode ser
subvertida, é aquela que aprendemos de Cristo. Porquanto Cristo é o único
fundamento da Igreja. Mas são muitos os que usam o nome de Cristo como cegos, e
reviram de ponta cabeça a verdade universal de Deus.
Portanto, observemos como a
Igreja é adequadamente edificada sobre Cristo, a saber, se exclusivamente ele é
posto como justiça, redenção, santificação, sabedoria, satisfação, purificação,
em síntese, como vida e glória; ou, se se preferir de forma mais breve, se ele
é pregado de tal forma que seu ofício e virtude são entendidos da forma como
são apresentados no final do primeiro capítulo. Ora, se Cristo não é
adequadamente conhecido e lhe é simplesmente atribuído o nome de Redentor,
enquanto que, ao mesmo tempo, a justiça, a santificação e a salvação são
buscadas em outras fontes, ele é lançado para fora do fundamento e pedras
falsas são postas em seu lugar. Temos um exemplo disto no procedimento dos
papistas, ou seja, ao despirem Cristo de quase todos os seus ornamentos, e não
lhe deixam quase nada senão um simples nome. Tais pessoas, pois, não estão de
forma alguma sendo fundamentadas em Cristo. Ora, visto que Cristo é o fundamento
da Igreja em razão de ser ele a única fonte de salvação e vida eterna, em razão
de que é nele que conhecemos Deus o Pai e em razão de se achar nele a fonte de
todas as nossas bênçãos - então, se não é reconhecido como tal, ele,
imediatamente, cessa de ser o fundamento.
Pode-se, porém, perguntar se
Cristo é somente uma parte, ou é ele o originador da doutrina da salvação,
porquanto o fundamento é apenas uma parte do edifício. Porque, se tal é o caso,
os crentes fariam de Cristo só o ponto de partida, sendo levados à
complementação sem qualquer conexão com ele, e de fato Paulo parece sugerir
isto. Minha resposta é que este não é o significado do que ele diz, de outra
sorte ele estaria se contradizendo ao dizer em Colossenses 2,3 que "todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento
estão ocultos nele". Portanto, a pessoa que tem "aprendido
Cristo" (Ef 4.20) já se acha plenificada de todo o ensino
celestial. Porém, visto que o ministério de Paulo se preocupava mais em
estabelecer os coríntios do que em erguer em seu meio a parte mais alta do
corpo do edifício, ele apenas mostra aqui o que já fizera, a saber, que ele
pregara Cristo, pura e simplesmente. Por esta razão, pensando no que fizera,
Paulo chama Cristo de o fundamento, mas não significa que ele exclui Cristo do
resto do edifício. Em outras palavras, ele não põe algum outro tipo de ensino
em contraste com o conhecimento de Cristo; ele está, antes, realçando a relação
existente entre ele [Cristo] e os outros ministros.
Mas
se alguém edifica sobre este fundamento. Ele persiste no uso da
metáfora. Não era suficiente - que o fundamento houvesse sido assentado, se
toda a superestrutura não lhe correspondesse. Pois, visto que seria absurdo
construir com material inferior sobre um fundamento de ouro, então é algo
perverso sepultar Cristo sob outras
doutrinas sobrepostas por homens. Portanto, Paulo quer dizer por
"ouro, prata e jóias", o ensino que não só se harmoniza com Cristo,
mas é também uma superestrutura em harmonia com esse fundamento. Além do mais,
não imaginemos que esta doutrina é extraída de outras fontes e não de Cristo,
senão que devemos, antes, entender que temos de continuar a ensinar Cristo, até
que o edifício esteja completo. Contudo, temos de prestar atenção na ordem de
fazer as coisas, de modo que pode-se iniciar com a doutrina geral e o mais
essencial dos principais pontos, como o fundamento. Em seguida vem reprovação,
exortações e tudo quanto é necessário para a perseverança, o encorajamento e o
progresso.
Visto que há pleno acordo sobre
o que Paulo quis dizer até aqui, segue-se, por outro lado, que o ensino que é
descrito aqui como "madeira,
restolho e feno" não se adequa ao fundamento; o ensino, isto é, o que
é engendrado pela mente humana e nos
é empurrado como se fosse [os próprios] oráculos de Deus. Pois Deus quer que
sua Igreja seja edificada com base na genuína pregação de sua Palavra, não com
base em ficções humanas; e isto é o que se pode descrever como tudo o que não
faz nada na maneira de construir. Nesta categoria estão questões especulativas que
geralmente fornecem mais para ostentação - ou algum louco desejo - do que para
a salvação de homens.
Paulo faz notório que no fim a
qualidade da obra de cada um se fará manifesta; mesmo que ela seja ocultada
pelo tempo presente. É como se dissesse: "Pode ser que os maus obreiros
vivam enganando, de modo que o mundo não consiga de forma alguma provar quão
fielmente ou quão honestamente cada um tenha feito seu trabalho. Mas o que
agora se acha, por assim dizer, submerso em trevas, deverá ser destruído diante
da face de Deus, e será considerado como algo indigno.

27 abril, 2010
0 A “Sabedoria” do Mundo é Fútil – João Calvino
Porque
a sabedoria deste mundo...(1Co
3.19-23) Este é um argumento do lado oposto. A confirmação de um
significa a destruição do outro. Portanto, visto que a sabedoria deste mundo é
loucura aos olhos de Deus, segue-se que a única maneira de podermos ser sábios
aos olhos de Deus é tornarmo-nos loucos aos olhos do mundo. Já expusemos o que
Paulo quis dizer com a expressão "sabedoria deste mundo": porque a
percepção natural é um dom de Deus. As artes que os homens naturalmente
procuram cultivar, e todas as disciplinas pelas quais a sabedoria é adquirida,
são também dons de Deus. Porém, tudo isso tem seus limites definidos, porque
não podem penetrar no reino celestial de Deus. Conseqüentemente, todas elas
devem ser servas, não senhoras. Além disso, eles devem ser olhados como inúteis
e indignos até que estejam completamente subordinados à Palavra e ao Espírito
de Deus. Mas se porventura se levantarem contra Cristo, que sejam considerados
uma injuriosa peste. E se se mantêm acreditando que são capazes de algo, por si
mesmos, então que sejam considerados como o pior dos obstáculos.
Portanto, a sabedoria deste
mundo é, segundo Paulo, aquilo que energicamente assume o senhorio de si mesmo
e se recusa a deixar-se dirigir pela Palavra de Deus, e tampouco se deixa humilhar
para que seja completamente sujeito a Deus. Portanto, até que suceda que uma
pessoa reconheça que nada sabe exceto o que aprendera de Deus e, tendo
rejeitado seu próprio entendimento, se ponha sob a direção exclusiva de Cristo,
tal pessoa é sabia pelos padrões do mundo, no entanto é tola aos olhos de Deus.
Pois está escrito: Ele apanha os sábios em sua própria astúcia.
Paulo apoia o que acaba de afirmar em dois textos da Escritura. O primeiro é
tomado de Jó 5.13. Aí a sabedoria de
Deus é exaltada porque em sua presença nenhuma sabedoria terrena pode se
estabelecer. Não há dúvida de que nesse contexto o profeta está a falar sobre o
astuto e o insidioso. Porém, visto que a sabedoria do homem é sempre da mesma
qualidade quando se acha divorciada de Deus, Paulo corretamente a adapta para
significar que, em¬bora os homens adquiram muita sabedoria por seus próprios
esforços, tal coisa não tem o menor valor aos olhos de Deus. O segundo é do Salmo 94.11, onde, após atribuir a Deus
a função e a autoridade para ensinar a todos, Davi acrescenta que "O
Senhor conhece os pensamentos do homem, que são pensamentos vãos". Portanto,
não importa quão altamente sejam valorizados por nós, segundo o juízo divino
são fúteis. Esta é uma excelente passagem para realçar a confiança carnal, pois
aqui Deus declara de cima que tudo o que a mente humana concebe e propõe é
simples nulidade.
Por isso, ninguém se glorie nos
homens. Visto que nada é mais indigno do que o homem,
quão pouca segurança há em depender-se de uma sombra inconsistente! Daí, ele
faz uma válida inferência da oração precedente ao dizer que não se deve gloriar
nos homens visto que ali vemos como o Senhor despe a todos os homens das bases
para a ostentação. Contudo, esta conclusão depende de tudo o que ensinou no
argumento precedente, como logo veremos. Pois visto que pertencemos
exclusivamente a Cristo, Paulo está plenamente certo em ensinar-nos que
qualquer preeminência que seja atribuída ao homem, que envolva o detrimento da
glória de Cristo, é sacrílega.
Todas
as coisas são vossas. Ele adiciona uma referência à posição e situação
que aos mestres devem ser concedidas, a saber: que não denigram o singular
ofício de Mestre que pertence a Cristo. Portanto, visto que Cristo é de fato o
único Mestre da Igreja; visto que ele só e em todas as circunstâncias deve ser
ouvido, é necessário fazer distinção entre ele e os demais. Cristo mesmo tabém
deu testemunho a seu próprio respeito em termos similares, em Mateus 23.8, e o Pai não está
recomendando qualquer outra pessoa, nesta palavra: A ele ouvi (Mt 17.5). Portanto, visto que somente
ele é investido de autoridade para governar-nos por meio de sua Palavra, Paulo
diz que os demais homens são nossos; em outras palavras, que Deus os designou a
fim de que pudéssemos usufruir do benefício deles; porém, não para que sejam os
dominadores de nossas consciências. Portanto, ele mostra, por um lado, que não
são inúteis; e, por outro, que ele os mantém em seu espaço, para que não sejam
convencidos e se ponham em oposição a Cristo.
Pelo que toca à presente
passagem, Paulo está usando hipérbole no que ele adiciona sobre a morte, a vida
e assim por diante. Entretanto, ele queria argumentar do maior para o menor,
por assim dizer, como segue: "Visto
que Cristo colocou a vida, a morte e tudo o mais subordinado a nós, pode haver
alguma dúvida de que ele fizesse os homens também sujeitos a nós, a fim de
auxiliar-nos por meio do que fazem em nosso favor; certamente, não para que
venham a ser dominadores e déspotas."
Além do mais, à luz disto
alguém pode objetar, dizendo que os escritos de Paulo e Pedro também estão
sujeitos ao nosso juízo, visto que ambos eram homens, e que não estão isentos
da sorte comum dos demais. Minha resposta é que, enquanto Paulo de modo algum
poupa a si mesmo nem a Pedro, ele aconselha os coríntios a distinguirem entre o
homem, em si mesmo, e a dignidade e caráter do ofício. E como se dissesse: "Quanto a mim mesmo, visto que sou
homem, desejo ser julgado somente como homem, a fim de que Cristo somente venha
a ser o único a ter preeminência em meu ministério." Entretanto,
devemos em conjunto manter que todos quantos exercem o ofício do ministério, do
maior ao menor, são nossos, de modo que somos livres, não para aceitar o que
ensinam até que evidenciem que é derivado de Cristo. Pois todos eles de- vem
ser provados, e obediência só deve ser-lhes prestada quando tiverem demonstrado
que são genuínos servos de Cristo. Porém, no que diz respeito a Pedro e Paulo,
o Senhor deu sobejas evidências, de modo que não fica qualquer sombra de dúvida
de que o seu ensino tem sua fonte nele. Em conseqüência, quando apreciamos e
respeitamos, como declaração do céu, tudo o que fizeram conhecido, damos
ouvidos, não propriamente a eles, mas como Cristo falando neles.
Cristo
é de Deus. Esta sujeição (de
Cristo a Deus) tem referência à humanidade de Cristo; pois, ao vestir-se
com a nossa carne, ele tomou para si a forma e condição de escravo, de modo que
se fez obediente ao Pai em todos os aspectos (Fp 2.7,8). E para que pudéssemos aderir a Deus através dele, é
certo que ele deve ter o Pai por Cabeça. Todavia, é preciso que prestemos
aten¬ção no propósito que Paulo tinha em mente quando adicionou isto. Pois ele
nos cientifica que a nossa mais plena felicidade consiste em nossa união com
Deus, que é o principal bem. Isto é concretamente efetuado quando somos
reunidos sob a Cabeça a quem o Pai celestial estabeleceu sobre nós. Em termos
similares, Cristo disse a seus discípulos (Jo
14.28): "Regozijai-vos, porque
vou para o Pai, porque o Pai é maior do que eu." Pois ele o levantou
como o Mediador através de quem os crentes podem ir a fonte original de todas
as bênçãos. E verdade que aqueles que abandonam esta única Cabeça são privados
desse grande benefício. Eis a razão para este plano, ou seja: aqueles que
desejam permanecer sob o governo de Deus, então que se sujeitem somente a
Cristo - o que se adequa bem com o teor deste texto.

26 abril, 2010
0 Por Que Deus se Demora? - João Calvino
Até
quando, ó" Jehovah? (Sal 13.1,2) É plenamente indiscutível que
Davi era grandemente odiado pela maioria do povo, em razão das calamidades e
más notícias que circulavam contra ele, ao ponto de quase todos os homens
julgarem que Deus não nutria menos hostilidade por ele do que Saul e seus
outros inimigos. Mas aqui ele fala não tanto segundo a opinião de outros, mas
de acordo com a angústia de sua própria mente, queixando-se de ser
negligenciado por Deus. Não que a persuasão da veracidade das promessas de Deus
estivesse extinta de seu coração, ou que ele não descansasse em sua graça; mas
quando nos vemos por muito tempo sobrecarregados com calamidades, e quando não
mais divisamos qualquer sinal do auxílio divino, este pensamento
inevitavelmente se nos impõe, ou seja: Deus se esqueceu de mim!
Reconhecer em meio às nossas
aflições que ele realmente se preocupa conosco não é muito próprio dos homens
nem é o que a própria natureza nos induz a fazer; mas é pela fé que tomamos
posse de sua providência invisível. Portanto, Davi, aparentemente, até onde
possa ser julgado à luz do real estado de suas atividades, estava de fato
esquecido por Deus. Ao mesmo tempo, contudo, os olhos de sua mente, guiados
pela luz da fé, penetraram até mesmo a graça de Deus, ainda que estivesse ela
envolta em trevas.
Quando ele disse que nem sequer
um único raio de esperança havia em qualquer direção para a qual se voltasse,
até onde a razão humana pudesse julgar, constrangido pela tristeza, ele clama,
dizendo que Deus não o levara em conta; e no entanto por sua própria queixa ele
fornece evidência de que a fé o capacitara a pôr-se em lugar mais alto, e chega
à conclusão de que, ao contrário do juízo da carne, seu bem-estar estava seguro
nas mãos divinas. Do contrário, como era possível que tivesse dirigido a Deus
seus gemidos e orações? Seguindo este exemplo, devemos então contender contra
as tentações, protegidos pela certeza de fé, mesmo submersos no mais emaranhado
dos conflitos [cotidianos], confessando que as calamidades que nos induzem ao
desespero têm de ser vencidas; justamente como vemos que a fraqueza da carne
não podia impedir Davi de recorrer a Deus e de encontrar nele seus recursos. E
assim ele associa em seus exercícios, com muita beleza, os sentimentos que
aparentemente são contraditórios. As palavras, Até quando, para sempre? são uma forma defectiva de expressão; mas
são muito mais enfáticas do que se ele houvera posto a pergunta segundo o modo
usual de falar: Porque demoras tanto?Ao falar assim, ele nos dá a entender que,
com o propósito de nutrir sua esperança e encorajar-se no exercício da
paciência, ele estendeu sua vista para um horizonte longínquo, e portanto não
se queixa de uma calamidade que durava apenas uns poucos dias, como os
efeminados e os covardes costumam fazer, os quais só vêem o que está diante de
seu nariz, e imediatamente sucumbem ao primeiro assalto. Davi nos ensina, pois,
mediante seu exemplo, a estender nossa vista, o máximo possível, para o futuro,
a fim de que nossa presente tristeza não consiga privar-nos inteiramente da
visão da esperança.
Até
quando consultarei minha alma? Sabemos que na adversidade os
homens se entregam ao descontentamento, volvem seus olhos em torno de si, numa
direção, noutra direção, em busca de remédios. Especialmente quando se vêem
destituídos de todos os recursos, atormentam-se profunda-mente e sentem-se
confusos ante a confusa multidão de seus pensamentos. E, em meio aos grandes
perigos, ansiedade e temor, são compelidos a mudar seus propósitos com muita
freqüência, quando não encontram plano algum sobre o qual possam firmar-se com
segurança.
Davi, portanto, se queixa de
que, enquanto pondera sobre os diferentes métodos de obter lenitivo,
deliberando consigo mesmo ora de um modo, ora de outro, sente-se exausto sem
sequer alcançar um alvo concreto, entre a infinidade de sugestões que percorrem
sua mente. E ao juntar a essa queixa a dor que sentia diariamente, ele põe em
relevo a fonte de sua inquietude. Quanto mais severa é a indisposição que os
enfermos sentem e desejam mudar de posição a cada momento, e quanto mais agudas
são as dores que os atormentam, mais agitados e nervosos se tornam, procurando
re-verter a situação. Portanto, quando a dor se apodera dos corações dos
homens, suas miseráveis vítimas são violentamente agitadas em seu íntimo, acham
mais tolerável atormentar-se sem obter alívio do que suportar suas aflições com
serenidade e com mentes tranqüilas. Na verdade o Senhor promete conceder ao
fiel "o espírito de conselho" [Is
11.2]; mas nem sempre lhos dá bem no início de um problema em que se acham
envolvidos, senão que os deixa por algum tempo embaraçados, deliberadamente,
sem chegar a uma determinada decisão, ou os mantém perplexos, como se
estivessem emaranhados por espinheiros, sem saber se voltam, ou que rumo tomam.
Alguns explicam a palavra, yomam, como significando todos os
longos dias. A meu ver, porém, ela significa, antes, outro tipo de
prosseguimento, ou seja, que sua dor se revolvia e se reno¬vava a cada dia. No
final do versículo ele deplora outro mal, a saber, que seus adversários
triunfam sobre ele de uma forma muito ousada, ao perceberem sua total
debilidade e, por assim dizer, consumido por contínuo langor. Ora, esse é um
argu¬mento de muito valor em nossas orações; pois não há nada que desgoste mais
a Deus, e que ele menos suportará, do que a cruel insolência que nossos
inimigos demonstram, quando não só se alegram em nos ver em miséria, mas também
se erguem acima de nós e nos ameaçam o mais desdenhosamente possí¬vel, à medida
que vêem crescer nossa opressão e desespero.
--------------------------------------------------------------------
O
tema deste Salmo é quase o mesmo do anterior. Davi, sentindo-se aflito, não só
com a mais profunda angústia, mas também sentindo-se, por assim dizer, submerso
em um turbilhão de calamidades e uma multiplicidade de aflições, implora o
auxílio e o socorro de Deus, o único remédio que lhe restava; e, na conclusão,
tomando alento, acalenta a iniludível esperança de vida, à luz da promessa de
Deus, mesmo em meio aos terrores da morte.
[vv. 1,
2]
Até quando, ó Jehovah? esquecer-te-ás
de mim para sempre? Até quando ocultarás de mim teu rosto?Até quando
consultarei minha alma, tendo tristeza em meu coração cada dia? Até quando meu
inimigo se exaltará sobre mim?

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24 abril, 2010
0 Santidade Prática - João Calvino
Aquele
que não difama com sua língua, nem faz mal a seu companheiro nem suscita
notícias caluniosas contra seu próximo.
Davi, depois de ter
sucintamente exibido as virtudes que devem adornar aos que desejam um lugar na
Igreja, agora enumera certos vícios dos quais devem estar isentos: Aquele que não difama com sua língua, nem
faz mal a seu companheiro nem suscita notícias caluniosas contra seu próximo.(Sl
15.3)
Em primeiro lugar, diz que não
devem ser difamadores ou caluniadores; em segundo lugar, devem refrear-se de
fazer alguma coisa prejudicial e injuriosa a seu próximo; e, em terceiro lugar,
não devem contribuir com a divulgação de calúnias e falsas notícias. Outros
vícios, dos quais os justos devem estar isentos, toparemos com eles à medida que
avançarmos. Davi, pois, situa a calúnia e difamação como o primeiro item da
injustiça pelas quais nosso próximo é injuriado. Se um bom nome é um tesouro,
mais precioso que todas as riquezas do mundo [Pv 22.1], não há maior injúria que alguém poderia sofrer do que
ver ferida sua reputação. Entretanto, não é qualquer palavra injuriosa que aqui
se condena, mas a moléstia e lascívia da difamação que incita as pessoas
maliciosas a espalharem calúnias.
Ao mesmo tempo, não se pode pôr
em dúvida que o propósito do Espírito Santo era condenar todas as falsas e
ímpias acusações. Na cláusula que se segue imediatamente, a doutrina que ensina
que os filhos de Deus devem manter-se afastados quanto possível de toda
injustiça é declarada de forma muito geral: Nem faz mal a seu companheiro.
Pelas palavras, companheiro e próximo, o salmista quer dizer não só aqueles com
quem desfrutamos de relacionamento familiar e vivemos em termos de íntima
amizade, mas todos os homens a quem estamos ligados por laços de humanidade e
natureza comum. Ele emprega esses termos para mostrar mais claramente a
odiosidade do que ele condena, e para que os santos nutram a mais intensa repugnância
de toda e qualquer conduta negativa, visto que cada pessoa que fere seu próximo
viola a lei fundamental da sociedade humana.
Com respeito ao significado da
última cláusula, os intérpretes não chegaram a um consenso. Alguns tomam a
frase, suscita notícias caluniosas, por inventar, porque as pessoas maliciosas
suscitam calúnias do nada; e assim ela não passa de uma repetição da afirmação
contida na primeira cláusula do versículo, ou seja, que as pessoas boas não
devem permitir que elas cedam à difamação. Mas creio estar também aqui repreendido
o vício da credulidade desmedida, a qual, quando alguma má notícia é divulgada
contra nosso próximo, nos leva ou a avidamente dar-lhe crédito, ou pelo menos a
recebemos sem razão plausível. Enquanto deveríamos, ao contrário, usar de todos
os meios para eliminá-la e destruí-la sob nossos pés. Quando alguém é o condutor
de falsidades inventadas, os que as rejeitam as lançam, por assim dizer, no
chão; enquanto que, ao contrário, os que as propagam e as publicam, de um
ouvido a outro, através de uma forma expressiva de linguagem, levam a fama de
suscitá-las.

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23 abril, 2010
0 Na Presença de Um Deus Santo – João Calvino
1.
Ó Jehovah, quem habitará em teu tabernáculo? Gomo nada no mundo é
mais comum do que apropriar-se falsamente do nome de Deus, ou pretender ser seu
povo, e visto que a maioria dos homens se permite fazer isso sem qualquer preocupação
pelo perigo que os envolve, Davi, sem deixar de falar aos homens, dirige-se a
Deus, o que ele considera ser o melhor rumo a tomar; e insinua que, se os
homens lançam mão do título, povo de Deus, sem o ser de fato e de verdade, nada
lucram enganando a si próprios, pois Deus continua sempre imutável e, visto ser
ele fiel a si próprio, portanto exige que sejamos também fiéis a ele como nossa
resposta. É verdade que ele adotou a Abraão graciosamente, mas, ao mesmo tempo,
lhe estipulou que sua vida seria santa e íntegra; e essa é a regra geral do
pacto que Deus, desde o princípio, fez com sua Igreja. Eis a suma: os
hipócritas, que ocupam um espaço no templo de Deus, debalde pretendem ser seu
povo, pois ele não reconhece a ninguém como tal, senão aqueles que seguem após
a justiça e a retidão ao longo de todo o curso de sua vida. Davi viu o templo
apinhado de uma grande multidão de homens que haviam feito todos a profissão de
uma mesma religião, apresentando-se diante de Deus através de um cerimonial externo;
e assim, assumindo a pessoa de alguém que se extasia ante um espetáculo, ele
dirige seu discurso a Deus que, numa confusão tal e numa miscelânea de
personagens, podia facilmente distinguir seu próprio povo por entre os
estranhos.
Há uma tríplice aplicação desta
doutrina. Em primeiro lugar, se
realmente desejamos ser considerados como parte do rol dos filhos de Deus, o
Espírito Santo nos ensina que devemos provar o que de fato somos através de uma
vida santa e íntegra; pois não basta servir a Deus através de cerimônias externas,
a menos que também vivamos com retidão e sem fazer dano a nosso próximo. Em
segundo lugar, já que tão amiúde vemos a Igreja de Deus desfigurar-se com
variadas impurezas, para evitar que tropecemos no que aparenta ser por demais
ofensivo, faz-se uma distinção entre aqueles que são cidadãos permanentes da
Igreja e os estranhos que penetram em seu seio por algum tempo.
Essa é indubitavelmente uma
advertência em extremo necessária, para que, quando o templo de Deus vier a ser
maculado por muitas impurezas, não nos deixemos confranger demasiadamente por
tais desgostos e vexações, ao ponto de virarmos-lhe as costas. Por impurezas
entendo os vícios de uma vida corrompida e poluída. Contanto que a religião
continue pura quanto à doutrina e ao culto, não devemos deixar-nos abalar em
demasia ante os erros e pecados que os homens cometem, como se com isso a
unidade da Igreja fosse dilacerada. Entretanto, a experiência de todas as
épocas nos ensina quão perigosa esta tentação se torna quando vemos a Igreja de
Deus, que deve prosseguir isenta de toda e qualquer mancha poluente e
resplandecer em incorruptível pureza, nutrindo em seu seio um grande número de
hipócritas ímpios ou pessoas perversas. Por causa disso é que os cataristas,
novacianos e donatistas, em seus primórdios, se aproveitaram para separar-se da
comunhão dos santos. Os anabatistas, atualmente, renovaram o mesmo cisma,
porque não lhes parecia que uma igreja com tais vícios pudesse ser a verdadeira
Igreja. Mas Cristo, em Mateus 25.32,
com justa razão alega ser seu, com toda propriedade, o ofício peculiar de
separar as ovelhas dos cabritos; e por isso nos admoesta que devemos suportar
os maus, e que não está em nosso poder corrigi-los, até que as coisas se tornem
amadurecidas e chegue o tempo próprio de purificar a Igreja. Ao mesmo tempo, os
fiéis são aqui intimados, cada um em sua própria esfera, a empregar todos os
seus esforços para que a Igreja de Deus seja purificada das corrupções que nela
ainda persistem.
E essa é a terceira aplicação que devemos fazer desta doutrina. O sagrado
celeiro de Deus não estará perfeitamente purificado antes do último dia, quando
Cristo, em sua vinda, lançará fora a palha. Mas ele já começou a fazer isso
através da doutrina de seu evangelho, que neste relato ele chama crivo de
joeirar. Não devemos, pois, de forma alguma ser indiferentes acerca desse
assunto; ao contrário, devemos antes mostrar-nos absolutamente sérios, para que
todos nós que professamos ser cristãos possamos levar uma vida santa e
imaculada. Acima de tudo, porém, o que Deus aqui declara com respeito a toda
injustiça deve ficar indelevelmente impresso em nossa memória; ou seja, que ele
os proíbe de entrar em seu santuário, e condena sua ímpia presunção em
irreverentemente intrometer-se na sociedade dos santos. Davi faz menção do
tabernáculo, porquanto o templo não havia ainda sido construído. O significado
desse discurso, para dizê-lo em poucas palavras, é o seguinte: somente aqueles
que têm acesso a Deus, e que vivem uma vida santa, é que são seus genuínos
servos.
2. Aquele que anda em
integridade. E preciso observar aqui que há nas palavras um
contraste implícito entre a vangloria daqueles que são o povo de Deus apenas
nominalmente, ou que apenas fazem vã profissão de uma fé fictícia, a qual consiste
de observâncias externas, e aquela indubitável e genuína comprovação da
verdadeira piedade que Deus recomenda. Mas, alguém poderia perguntar: visto que
o serviço de Deus tem precedência em relação aos deveres da caridade para com
nosso próximo, por que não se faz menção aqui da fé e da oração? Pois com
certeza essas são as marcas pelas quais os genuínos filhos de Deus devem ser
distinguidos dos hipócritas. A resposta é simples. Davi não pretendia excluir a
fé e a oração, bem como outros sacrifícios espirituais; visto, porém, que os
hipócritas, a fim de promoverem seus interesses pessoais, não se poupam em sua
atenção posta na multiplicidade de observâncias religiosas externas, enquanto
sua impiedade, não obstante, se manifesta externamente no viver, porquanto se
enchem de orgulho, crueldade, violência e se entregam à fraude e extorsão - o
salmista, com o propósito pôr a descoberto e trazer à luz todos os que possuem
tal caráter, traça as marcas e evidências da genuína e sincera fé à luz da
segunda tábua da lei.
Segundo o cuidado que cada
pessoa deve tomar na prática da justiça e eqüidade em relação a seu próximo,
assim ela mostra que real-mente possui o temor de Deus. Davi, pois, não deve
aqui ser entendido como a repousar satisfeito com a política ou com a justiça
social, como se bastasse devolver aos nossos semelhantes o que lhes pertence,
enquanto que podemos licitamente defraudar a Deus de seu direito. Mas ele
descreve os servos aprovados de Deus como que distinguidos e conhecidos pelos
frutos de justiça que produzem. Em primeiro lugar, ele requer sinceridade;
noutros termos, que os homens se conduzam em todos os seus afazeres com
singeleza de coração e destituídos de astúcia ou artifícios pecaminosos. Em
segundo lugar, ele requer retidão; equivale dizer que devem esforçar-se por
fazer o bem a seu próximo, a ninguém prejudicar e abster-se de todo e qualquer
mal. Em terceiro lugar, ele requer veracidade em sua conversação, de modo a não
falar qualquer falsidade ou duplicidade. Falar em seu coração é uma forte
expressão figurativa, mas ela expressa agudamente a intenção de Davi mais do
que se ele dissesse de seu coração. Ela denota a concordância e harmonia entre
o coração e a língua, visto que a linguagem é, por assim dizer, uma vivida
representação da afeição oculta ou sentimento interior.
[Salmo
15. 1, 2]
O
Jehovah, quem habitará em teu tabernáculo? Quem descansará no monte de tua
santidade? Aquele que anda em integridade e pratica a justiça, e que em seu
coração fala a verdade.

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22 abril, 2010
0 Obediência e Sofrifmento - João Calvino
Ele
aprendeu a obediência (Hb 5.8-11). O primeiro propósito dos
sofrimentos de Cristo consistia em que, dessa forma, ele estaria acostumando-se
à obediência. Não que ele fosse compelido a isso pela força, ou que tivesse
alguma necessidade de tais práticas, da maneira como a ferocidade dos bois e
cavalos é domada. Ele era plenamente disposto a prestar aquela voluntária
obediência que ao Pai é devida. Ele fez isso em nosso benefício, para
apresentar-nos o exemplo e o padrão de sua própria submissão mesmo em face da própria
morte. Ao mesmo tempo pode-se dizer realmente que Cristo, por sua morte,
aprendeu perfeitamente o que significava obedecer a Deus, já que esse era o
ponto no qual ele atingiu sua maior auto-renúncia. Ele renunciou sua própria
vontade e entregou-se de tal modo ao Pai, que espontânea e voluntariamente
enfrentou a morte, à qual temia tanto. Portanto, o sentido consiste em que,
pela experiência de seus sofrimentos, Cristo nos ensinou até onde devemos
submeter-nos e obedecer a Deus. E justo, pois, que mediante seu exemplo sejamos
ensinados e preparados por todo gênero de sofrimentos e, finalmente, pela
própria morte, a prestar obediência a Deus. Aliás, nossa necessidade é ainda
muito maior, porque temos uma disposição rebelde e indomável, até que Deus nos
convença a levar seu jugo através de aflições como essas.
Esse benefício que provém da
cruz deve adocicar em nossos corações a amargura proveniente dela. O que mais
se pode desejar além de nosso retorno a Deus em plena obediência? Tal coisa não
pode suceder a não ser por meio da cruz. Pois em tempos de prosperidade
corremos exuberantemente a rédeas soltas e, na maioria dos casos, quando nos
tiram o jugo, se prorrompe em nós o desenfreamento da concupiscência de nossa
carne. Mas quando nossa vontade é mantida sob repressão, de modo que procuramos
agradar a Deus, então nossa obediência realmente se manifesta. A clara prova de
nossa perfeita submissão, digo eu, é quando preferimos a morte, à qual Deus nos
chama, ainda quando diante dela nos estremecemos, em vez da vida que
naturalmente desejamos.
E
tendo sido aperfeiçoado. O propósito último, ou mais remoto, como é
assim chamado, ou seja: por que Cristo tinha que sofrer?, foi para que dessa
forma fosse iniciado em seu sacerdócio. E como se o apóstolo estivesse dizendo
que suportar a cruz e morrer eram para Cristo uma solene forma de consagração,
indicando assim que todos os seus sofrimentos tinham a ver com nossa salvação.
Daqui se deduz que eles de forma alguma denigrem sua dignidade, pelo contrário
são para sua glória. Se nossa salvação nos é preciosa, com muito maior honra
devemos considerar seu Autor! Esta passagem não só fala do exemplo de Cristo,
mas vai além, e afirma que, por meio de sua obediência, Cristo apagou nossas
transgressões. Ele tornou-se o Autor de nossa salvação, visto que se fez justo
aos olhos de Deus, quando remediou a desobediência de Adão através de um ato contrário de
obediência.
'Santificado' se adequa melhor
ao contexto do que 'aperfeiçoado'. Contudo, visto que a passagem é acerca do sacerdócio, o
escritor, de forma apropriada e conveniente, menciona santificação. Cristo
mesmo fala assim em outro lugar [Jo 17.19]: "Em favor deles eu me
santifico a mim mesmo." Daqui se faz evidente que a referência é
justamente à sua natureza humana, na qual ele exerceu o ofício de Sacerdote e
na qual ele sofreu.
Para
quantos lhe obedecem. Se desejamos que a obediência de Cristo nos
seja proveitosa, então devemos imitá-la. O apóstolo subentende que os frutos
dela não vêm a qualquer um, senão somente àqueles que são obedientes. Ao dizer
isso, ele nos recomenda a fé, pois nem ele nem seus benefícios se tornam
nossos, a não ser à medida que os recebemos, a ele e a seus benefícios, por
meio da fé. Ao mesmo tempo, o autor inseriu um termo universal - para quantos -
para mostrar que ninguém que prove ser atento e obediente ao evangelho de
Cristo é excluído desta salvação.
Nomeado
por Deus. Como se fazia necessário que o autor desse seguimento à
comparação entre Cristo e Melquisedeque, por haver dissertado sobre ela só de
passagem, e para incitar a mente dos judeus a prestar mais atenção, ele agora
passa a uma digressão e ao mesmo tempo retém o argumento principal.
Portanto, adiciona um prefácio
para expressar que tinha muito que dizer, mas deveriam estar preparados para
que não lhes dirigisse a palavra em vão. Ele os adverte, dizendo que o que
tinha a lhes dizer seria duro de se ouvir, não para afugentá-los, mas para
aguçar sua atenção. Como sucede que aquilo que se nos afigura fácil, geralmente
nos torna lerdos, assim somos aptos a ouvir mais atentamente ao nos
defrontarmos com algo que se nos afigura obscuro. Ele aponta para eles como a
causa da dificuldade, não o tema. Aliás, Deus trata conosco de uma forma tão
clara e isenta de ambigüidade que sua Palavra é com razão denominada de luz.
Seu brilho, contudo, é ofuscado por nossas trevas. Isso sucede em parte por
causa de nosso embotamento e em parte por causa de nossa leviandade. Apesar de
sermos mais do que obtusos em nosso entendimento da doutrina de Deus, há ainda
que adicionar a esse vício a depravação de nossas afeições. Aplicamos nossa
mente mais à vaidade do que à verdade de Deus. Somos continuamente impedidos,
ou por nossa rebelião, ou pelos cuidados deste mundo, ou pela luxúria de nossa
carne.
De
quem
não se refere a Cristo, e, sim, a Melquisedeque. Todavia, não se refere a ele
em particular, como indivíduo, mas no sentido de ser ele um tipo de Cristo e de
certa forma personificando-o.

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