05 março, 2010
0 A Palavra de Deus é Viva e Eficaz - João Calvino
A palavra de Deus é viva e eficaz - (Hb 4.12). Tudo o que ele diz aqui
com relação à eficácia da Palavra é com o propósito de que
soubessem que não poderiam desmerecê-la impunemente.
É como se dissesse: Sempre que o Senhor se nos acerca com sua Palavra, ele está tratando conosco da forma
mais séria, com o fim de mover todos os nossos sentidos mais profundos. Portanto, não há parte de nossa alma que não receba sua influência. Entretanto, antes
de darmos um passo adiante, carece
que consideremos se o apóstolo está
falando da Palavra em termos gerais, ou se ele está fazendo, aqui, uma referência particular àqueles
que crêem. E geralmente aceito que a
Palavra de Deus não é igualmente eficaz
em todos. Ela aplica seu poder nos eleitos, com o fim de humilhá-los através de um genuíno
reconhecimento do que na verdade são,
para que fujam e se escondam na graça de
Cristo. Isso jamais aconteceria, se a Palavra não penetrasse as
profundezas do coração. A hipocrisia, que se acha presente nos admiráveis e infinitamente tortuosos recantos dos
corações humanos, deve ser erradicada. Devemos estar não só humildemente
dispostos a espicaçar-nos e a afligir-nos,
mas também a ser profundamente feridos, para que, prostrados pelo senso da morte eterna, aprendamos a morrer
para nós mesmos. Jamais seremos renovados em toda
a nossa mente (como Paulo requer em Efésios 4.23) até que nosso velho
homem haja sido morto pelo gume dessa espada
do Espírito. Eis a razão por que Paulo diz em outro lugar [Fp
2.17] que aqueles que crêem são
oferecidos em sacrifício a Deus, visto que não podem ser trazidos à
obediência a Deus senão pela morte de seus próprios desejos, bem como não podem ver a luz da sabedoria divina senão
pela destruição de sua sabedoria carnal. Tudo isso não pode aplicar-se no caso
dos incrédulos. Ou displicentemente
desconsideram a Deus quando lhes fala, e
dessa forma motejam dele, ou bradam contra sua doutrina e se levantam insidiosamente contra ela. Sendo a
Palavrra de Deus semelhante a um martelo, o coração deles é semelhante a uma bigorna, de modo que sua dureza
repele os golpes por mais fortes que
sejam. Eles se acham muito longe para que a Palavra de Deus penetre
neles, até ao ponto de dividir alma e espírito. Desse modo parece que
essa cláusula deve restringir-se somente àqueles que crêem, visto que unicamente eles podem ser examinados no mais
profundo de seu ser.
Em contrapartida, o contexto do apóstolo revela que este é um princípio geral que se aplica também aos incrédulos. Embora se oponham à Palavra de Deus com um coração de ferro ou de aço, não obstante devem necessariamente ser refreados
por seu próprio sentimento de culpa. Riem, é verdade,
mas é um riso sardônico, porque sentem como se estivessem sendo sufocados interiormente, e forjam toda espécie de evasivas com o intuito de evitar a
aproximação do tribunal de Deus. Por
mais indispostos que eles sejam, são arrastados para a presença dessa
mesma Palavra que tão veementemente
ridicularizam, para que sejam comparados apropriadamente com cães furiosos, que mordem e esganam a corrente a que se acham presos, embora sem
qualquer efeito, porque ainda
permanecem firmemente acorrentados. Além disso, embora o efeito dessa
Palavra talvez não se revele imediatamente, no mesmo dia, contudo o resultado será
inevitável, e aquele que a prega descobrirá
que a ninguém a pregou em vão. Cristo certamente falou em termos de aplicação geral quando afirmou: "Quando ele
vier convencerá o mundo..." [Jo
16.8]. O Espírito exerce esse juízo através da pregação do evangelho.
Finalmente, ainda quando a Palavra de Deus nem
sempre manifeste esse poder nos homens, todavia ela, em alguma medida, o
possui em si mesma. O apóstolo está
discutindo, aqui, acerca da natureza e da função
própria da Palavra para o propósito
único, a fim de que saibamos que assim que ela soa em
nossos ouvidos, nossas consciências são citadas acusativamente diante do
tribunal de Deus. É como se dissesse: Se
porventura alguém presume que a Palavra de Deus ecoa no vazio, ao ser proclamada, esse tal está fazendo uma grande confusão. Essa Palavra é algo vivo e
cheio de poder secreto, a qual não
deixa nada no homem que não seja tocado.
A suma de tudo isso é que tão logo Deus abra seus santos lábios, todos os nossos sentidos também
devem abrir-se para receber sua Palavra, porque não faz parte de sua vontade permitir que suas palavras sejam semeadas
em vão, nem tampouco feneçam ou
desapareçam no solo da vida, senão
que desafiem eficazmente as consciências humanas, até que as tragam jungidas ao seu domínio. Ele,
pois, dotou sua Palavra com tal poder, para que a mesma perscrute cada
área de nossa alma, para revelar os escrutínios dos pensamentos, para decidir
entre as afeições e para manifestar-se como juiz.
Aqui surge uma nova questão, se essa Palavra deve ser considerada
como sendo a lei ou o evangelho. Os que entendem
que o apóstolo está falando da lei, evocam estes testemunhos
paulinos: que é um ministério de morte; que é a letra que mata [2 Co 3.6-7]; que não opera outra coisa
senão ira [Rm 4.15], e outros da mesma natureza. Mas aqui o apóstolo realça seus efeitos divergentes. E, por
assim dizer, um gênero de matança que
faz viva a alma, e que se dá através do
evangelho. Devemos entender, pois, que quando o apóstolo diz que ela é viva e eficaz, ele está a
referir-se à doutrina geral de Deus.
Paulo dá testemunho de tal efeito [2 Co 2.16], dizendo que de sua pregação exala um odor de morte para a morte daqueles que não crêem, bem como de vida
para a vida dos fiéis, de modo que
jamais fala em vão, sem que conduza alguns
à salvação, compelindo outros à destruição. Esse é o poder de atar e
desatar que o Senhor conferiu a seus apóstolos [Mt 18.18]. Esse é o poder do
Espírito no qual Paulo se gloria [2 Co
10.4]. Aliás, ele jamais nos promete salvação em Cristo sem, em
contrapartida, pronunciar vingança sobre os
incrédulos que, ao rejeitarem a Cristo, trazem morte sobre si próprios.
Além do
mais, é mister que observemos que o apóstolo, aqui, está a discutir a Palavra de Deus que nos é comunicada pelo ministério dos homens. São dementes e mesmo danosas todas as noções de que, não obstante a Palavra interna
ser certamente eficaz, aquela que emana dos
lábios humanos é morta e carente
de qualquer efeito. Admito que a eficácia certamente
não flui da língua humana, nem consiste em seu próprio som,
senão que deve ser atribuída totalmente ao Espírito Santo; no entanto não
impede o Espírito de manifestar seu poder na
Palavra que é proclamada. Porque Deus
mesmo não fala senão através dos homens; ele toma grande cuidado para que sua doutrina não seja
recebida com descaso por seus
ministros serem homens. E assim, quando Paulo diz que o evangelho é o
poder de Deus [Rm 1.16], deliberadamente distinguiu sua própria pregação com tal honra, a qual o apóstolo percebeu ser aprovada por alguns e rejeitada por outros. Ao ensinar-nos em outro lugar
[Rm 10.8-10] que a salvação nos é conferida pelo ensinamento proveniente
da fé, ele expressamente diz que essa é a doutrina que é anunciada. Vemos que
Deus sempre recomenda publicamente a
doutrina que nos é ministrada pelo esforço humano, com o propósito de
induzir-nos a recebê-la com reverência.
Ao dizer que a Palavra é viva, é
preciso entender tal expressão "em
ralação aos homens". Isso se faz ainda mais evidente à luz do segundo
adjetivo. Ele mostra que espécie de vida ela possui ao prosseguir
chamando-a eficaz. O objetivo do
apóstolo era ensinar-nos o gênero de utilidade que a Palavra tem para nós. A Escritura faz uso da metáfora da espada em outras passagens, o apóstolo, porém,
não se contenta com uma simples
comparação. Ele diz que a Palavra de
Deus é mais cortante que qualquer espada; aliás, uma espada de dois gumes, porque em sua época
era freqüente o caso de espadas que
só cortavam de um lado, e do outro não.
Penetra até... etc. O substantivo alma amiúde significa o mesmo que espírito, mas quando são ambos
associados, a primeira inclui todas as afeições,
enquanto que o último indica a
faculdade a que chamam intelectual. Assim também em 1 Tessalonicenses 5.23, quando Paulo ora a Deus para que guardasse o espírito, a alma e o corpo deles
incorruptíveis até à vinda de Cristo, ele quer
dizer simplesmente que permanecessem puros e
santos em sua mente e vontade e ações
exteriores. Semelhantemente, quando Isaías diz [26.9]; "Com minha
alma suspiro de noite por ti, e com o meu espírito
dentro em mim", certamente que sua intenção era que seu esforço em buscar a Deus era tão profundo, que aplicava sua mente tanto quanto seu coração a tal
intento. Estou consciente de que há aqueles que
apresentam uma interpretação diferenciada. Mas
espero que toda pessoa sensível esteja
disposta a concordar comigo.
Voltemos à
passagem que ora estamos a considerar. A Palavra
de Deus penetra ao ponto de dividir alma e espírito. Significa que ela testa toda a alma de uma pessoa. Ela
explora seus pensamentos e sonda sua vontade e todos os seus desejos. O mesmo significado se acha implícito na
frase juntas e medulas. Significa que não há nada tão difícil ou sólido
numa pessoa, nada tão profundamente
oculto que a eficácia da Palavra não
penetre até lá. Isso é o que Paulo diz em 1 Coríntios 14.24, ou seja:
que a profecia tem o poder de convencer e
julgar os homens, a fim de que os segredos do coração se manifestem.
Visto que a função de Cristo é descobrir e
trazer a lume os pensamentos que fluem dos recessos mais profundos do coração, em grande medida ele o faz
através do evangelho.
A Palavra de Deus, portanto, é Kp itikóç (=discernidora),
porque traz à mente humana a luz do
conhecimento, como se a tirasse de um labirinto onde jazia outrora enredada.
Não há trevas mais densas do que a
incredulidade, e a hipocrisia nos cega
de uma forma terrificante. A Palavra de Deus dissipa tais trevas e faz a
hipocrisia bater em retirada. É daqui que emana
o discernimento e o juízo que o apóstolo menciona, visto que os vícios que se ocultam sob a falsa fachada de
virtudes começam agora a descortinar-se
e sua aparência se desvanece.
Ainda quando os réprobos fiquem por algum tempo
ocultos em seus covis, descobrirão que até mesmo ali a luz da Palavra finalmente penetrou, de modo que não podem escapar
do juízo divino. Daqui se ergue seu lamento
e deveras seu furor, porquanto se não
forem estremecidos pela Palavra,
jamais perceberiam sua loucura. Tentam escapar ou evadir-se e evitar seu poder, ou ainda procedem como se não a tenham notado. Mas Deus não permite que logrem sucesso. Portanto, enquanto caluniam ou injuriam a
Palavra de Deus, admitem, embora a contra gosto
ou relutantemente, que sentem seu poder em seu íntimo.
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