04 março, 2010
0 É a Lei Pecado? - João Calvino
Que diremos, pois? É a lei pecado? (Rm
7.7-8). Já que havia dito que precisamos livrar-nos da lei para que
possamos servir a Deus em novidade do Espírito, pode ficar a impressão de que a
força que nos impele a pecar é algo inerente à lei. Todavia, visto que tal fato seria o pior dos
absurdos, o apóstolo, com toda razão, empreende aqui a tarefa de
refutá-lo. Ao perguntar: É a lei
pecado?, ele está querendo
dizer: "A culpa da existência do pecado deve ser lançada
sobre a lei?".
De modo nenhum. Mas eu não teria
conhecido o pecado, senão por intermédio da lei. Portanto,
o pecado reside em nós, e não na lei. A causa do pecado consiste no desejo
corrupto de nossa carne. Chegamos à consciência dele através de nosso
conhecimento da justiça de Deus que nos é declarada na lei. Não devemos chegar
à conclusão de que não houve qualquer distinção entre certo e errado fora do
âmbito da lei, senão que à parte da lei nos achamos ou completamente
obscurecidos para discernir nossa própria depravação, ou que nos tornamos inteiramente
privados de senso em virtude de nosso envaidecimento.
Pois não
teria conhecido a cobiça. Esta, pois, é uma explicação da
cláusula anterior, na qual ele mostra que a ignorância quanto ao pecado, da
qual já nos falou, se deve ao impedimento de alguém perceber sua própria
concupiscência. O apóstolo, deliberadamente, insiste sobre este gênero de
pecado, no qual a hipocrisia é o fator especialmente dominante, e o qual está
sempre conectado à excessiva tolerância e à falsa confiança. Os homens nunca se
acham tão desprovidos de juízo que são impedidos de fazer distinção entre as
obras externas. Aliás, na verdade são sempre compelidos a condenar os conselhos
ímpios e vícios congêneres. Entretanto, não podem fazer isso sem antes conferir
o devido louvor a uma mente honesta. O pecado da concupiscência é algo muito
mais secreto e profundamente oculto. Eis a razão por que os homens nunca levam
isso em conta, enquanto julgarem segundo seus próprios sentimentos. Não é preciso pressupor que Paulo se vangloriasse de
ter vivido completamente isento de concupiscência. Pois ele nunca foi tão
autocondescendente que deixasse de perceber que tal pecado estivesse sempre à
espreita em seu coração. Embora,
por algum tempo, vivesse enganado, visto que não cria que
sua justiça pudesse ser obstruída por sua concupiscência, todavia percebeu,
finalmente, que era um pecador, quando descobriu que a concupiscência, da qual
nenhum ser humano escapa, era na verdade proibida pela lei.
Agostinho
afirma que Paulo, nesta expressão, incluiu todo o conteúdo da
lei. Isto, se for corretamente entendido, é verdadeiro. Moisés, depois de
mostrar quais as ações que devemos evitar a fim de não errarmos contra o nosso
próximo, adiciona esta proibição concernente à concupiscência que vemos referida em todas as suas proibições. E
plenamente certo que nos mandamentos precedentes Moisés haja condenado
todas as tendências corruptas que concebemos em nossos corações. Entretanto,
existe uma grande diferença entre um propósito deliberado e os desejos pelos
quais somos tentados. Deus, portanto, neste último mandamento, exige de nós uma
integridade tal que não devemos permitir que nenhum anelo corrupto nos mova em
direção ao mal, e nem mesmo obtenha ele o nosso consentimento. Foi precisamente
por isso que eu disse que o pensamento de Paulo, aqui, vai além da comum
capacidade humana de entender. As leis civis irrestritamente punem as intenções
[=consilia] e não os eventos. Os filósofos, com grande refinamento,
localizavam tanto os vícios quanto as virtudes na vontade [=in animo]. Deus,
contudo, neste preceito, penetra o próprio coração de nossa concupiscência, a
qual, visto ser mais escondida que a vontade, não é considerada como vício. Não
só era tolerada pelos filósofos, mas em nossa época os papistas ferozmente ensinam
que nos regenerados ela não é pecado. Paulo,, contudo, diz que encontrara nesta
enfermidade secreta a fonte de seu pecado. Conclui-se deste fato que
aqueles que se vêem contaminados por ela não têm, de forma alguma, como
justificar-se, a não ser que Deus perdoe sua culpa. Entretanto, é-nos
indispensável que façamos distinção entre os desejos depravados que contam com
nosso consentimento e a concupiscência que tenta e afeta os nossos corações de tal sorte que se interpõe como empecilhos para
nos forçar a pecar.
8a, Mas o pecado, tomando ocasião
pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de cobiça. Todo
mal, pois, procede do pecado e da corrupção da carne. A lei não passa de
ocasião do mal. Aparentemente, o apóstolo está a falar somente do excitamento
pelo qual a lei desperta nossa concupiscência para jorrar imundícia em grandes
borbotões. Entretanto, em minha opinião, ele pretendia expressar aquela
consciência do pecado que a lei comunica, como se dissesse: "A lei
descobriu em mim toda a minha concupiscência que, enquanto se mantinha oculta,
parecia nem mesmo existir.55 Contudo, não nego que a carne é mais
vivamente estimulada para a concupiscência por intermédio da lei, e que é desta
forma que ela também se manifesta. Este pode igualmente ter sido o problema de
Paulo. No entanto, acredito que tudo o que tenho dito acerca da manifestação do
pecado se adequa melhor ao contexto, porquanto Paulo imediatamente adiciona:
8b. Porque sem lei o pecado está
morto. O apóstolo expressa nos termos mais claros possíveis o
significado das palavras supra transcritas. E como se ele quisesse dizer que
sem a lei o conhecimento do pecado jaz sepultado. Esta é uma observação geral,
a qual presentemente ele aplica à sua experiência pessoal. Portanto, sinto-me
surpreso com o que os tradutores tinham em mente ao comporem a passagem no tempo imperfeito, como se Paulo estivesse falando
de si mesmo. E evidente que o seu propósito era iniciar com uma
proposição de caráter universal, para em seguida explicar o tema pelo prisma de
sua própria experiência.
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